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VAIDADE



Quando escolho o significado das palavras
Que temperam os movimentos que negligencio
Ainda ninguém perscruta o meu diário.

A sombra retrai-se em cada carícia
Da luz que trespassa a janela opaca.
Corto as unhas demasiado rentes
Para ansiar arranhar as paredes
E despadronizar o papel pardo que não escolhi.
Tenho a vida guardada nos poemas de infância
Onde me declaro inocente
Pelos brinquedos que não possui.
Escreve-se a giz a data de hoje no obituário negro,
Em forma de coração mais-que-perfeito,
Mas não respeito o chamamento do meu nome.

Peço silêncio até terminar o meu discurso!

E a cabeça que não estoura?
Pelos meus olhos podem imiscuir-se na minha profundidade.
A temperatura já vai demasiado alta
Para merecer o crédito da caixa dos comprimidos.
As portas de emergência do corpo
Devolvem ao mundo a minha natureza.
A tosse exacerbada desconfia do xarope caseiro,
E a caneta em privação alcoólica treme
Quando enjeita adjectivos para o despertar da tinta.

Não se atrevam a levantar a mão!
Não vos concederei a palavra
Enquanto pedirem que morra de pé!

Não conheço o veneno ideal
Para a minha falta de apetite.
Como não sou demasiado ingénuo
Para desconfiar do voo migratório das aves,
Obstinadamente fixo o olhar no céu
À espera de um sinal de retorno.
Tenho as entranhas fora do prazo de validade
Adormecidas no congelador,
E não considero temperar o corpo
Com os condimentos ideais.

As palavras femininas querem-me por perto.
Quantas mulheres compõem um homem fértil?
Os espelhos que dizem de beleza
Não vão além da superficialidade
Do meu humilde sorriso.
E as feridas que cicatrizaram são memórias
Por reconhecer na multidão.
Digam-me das minhas necessidades básicas…
Se ainda me declararem culpado
Por questionar a sabedoria dos líricos
Dividam em punhados iguais o conteúdo
Das minhas mãos vazias,
E em santuários de luz entreguem-me
À devoção das primeiras trovoadas.


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