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EPITÁFIO


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Mensagens populares deste blogue

OS NECRÓFAGOS

Hoje é o dia de proceder ao inventário das coisas fúteis: Reiteraram-se os órgãos cansados, os ossos quebrados, A pele viscosa reconhece as rugas espelhadas, O coração, vulgar e despreocupadamente cansado, Não vai além de um quarto de quilo. Do fígado sei as lânguidas bebedeiras, E dos pulmões a melancolia das madrugadas. Quando pensava largar o meu corpo à Ciência A defesa do consumidor alertou para a falta de qualidade da minha alma. Tinha para mim que a carne apesar de estar fora do prazo de validade Ainda daria para aguentar mais duas ou três revoluções Da ordem natural das coisas. Sinto um calor quase maternal: Começam pelos olhos de forma a eu não conseguir olhar para dentro. O coração é embalado e após o tempo de quarentena previsto por lei, Será o prato principal da mesa real. Debicam-me as entranhas em espasmos de degustação. Uma multidão sem preceitos suplica o meu bucho E nem os preconceitos das minhas tripas Adelgaçarão o apetite de nobres criaturas domé...

PREÇO CORRENTE

Existe uma loja, para os lados do cais das despedidas difíceis, Onde ainda se pode comprar amor tradicional ao quilo. Da última vez que fui a esse estabelecimento, Tão apertado que é só comporta um cliente de cada vez, A rapariga ao balcão quase me convencia A comprar todo a amor que a loja tinha em stock. Já passaram uns anitos e ainda tenho amor espalhado pela casa, Dentro do prazo de validade. Nessa loja o amor tinha garantia vitalícia. Não sei qual é preço actual do amor tradicional: Desde que deixou de ser cotado em bolsa O seu preço baixou drasticamente ao invés do produzido em cativeiro Tabelado a um preço muito inferior, mas de dúbia qualidade. Nunca tinhas sido demasiado pobre para pressupor Que tinha direito a mais do que a cópula das minhas mãos consentiam. Os técnicos económicos vivem atormentados com a inflação: Os indicadores macroeconómicos anunciam outra crise Que envergonhará a actual, segundo os mais respeitados profetas. E o prod...

VAIDADE

Quando escolho o significado das palavras Que temperam os movimentos que negligencio Ainda ninguém perscruta o meu diário. A sombra retrai-se em cada carícia Da luz que trespassa a janela opaca. Corto as unhas demasiado rentes Para ansiar arranhar as paredes E despadronizar o papel pardo que não escolhi. Tenho a vida guardada nos poemas de infância Onde me declaro inocente Pelos brinquedos que não possui. Escreve-se a giz a data de hoje no obituário negro, Em forma de coração mais-que-perfeito, Mas não respeito o chamamento do meu nome. Peço silêncio até terminar o meu discurso! E a cabeça que não estoura? Pelos meus olhos podem imiscuir-se na minha profundidade. A temperatura já vai demasiado alta Para merecer o crédito da caixa dos comprimidos. As portas de emergência do corpo Devolvem ao mundo a minha natureza. A tosse exacerbada desconfia do xarope caseiro, E a caneta em privação alcoólica treme Quando enjeita adjectivos para ...