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POR UM DIA

Por um destes dias chegará a notícia da tua partida.
Nenhuma lágrima será por mim vertida.
Não gritarei palavras proibidas, nem farei minutos de silêncio,
Não confrontarei o meu deus nem porventura o teu.
Como não tiveste tempo para te despedires, meu poeta,
Perguntarei por ti a todos os caminhantes que comigo se cruzarão
Na estrada que conduz aos portões da tua última morada.
Faltarei às cerimónias fúnebres apressadas
Que os poetas deitam mau cheiro depois de mortos,
E ficarei à tua espera no lugar habitual.
O jornal trará a tua fotografia a preto-e-branco
Tens razão, meu amigo, é a fotografia da tua formatura!
A mesma fotografia, a única que que se te reconhece,
Que te tiraram sem pedir autorização quando recebeste o diploma de poeta.
Dias sem fim dedicar-te-ei poemas malditos
E sem proferir o teu nome de guerra
Encomendarei missas em sufrágio da tua alma.

Pertencer-me-á, como combinámos a autoria do teu epitáfio,
Mas tu não cumpriste a tua parte e eu agora estou proibido de morrer.
Como teu testamentário vou dividir em partes iguais os teus versos:
Cada viúva tua receberá um singelo poema de amor
E meia-dúzia de palavras soltas de dúbio significado.
Cada um dos teus filhos receberá a carta de despedida que deixaste em branco.
Os teus objectos de desejo mais íntimos,
Os óculos vintage que guardo no bolso interior do meu casaco,
A caneta fria de tinta permanente, os sapatos gastos,
Pertencerão à minha colecção de objectos de culto.
Como não quiseste ser profissional dos versos passionais
Não fizeste fortuna neste mundo…

Como pediste serás enterrado despido, descalço,
Não vá a a terra estranhar a tua superficialidade!
Como último desejo não te será concedido tempo
Para te redimires dos crimes públicos.

Sentar-me-ei na tua última morada
A tentar-te decifrar nos poemas que deixaste por criar.
Alguém terá deposto na jarra a que tens direito por lei
As tuas flores de plástico preferidas:
Quem as trouxe sabia das tuas alergias ...

Prometo que quando o teu primogénito se for juntar a ti
Estarei presente para recolher os teus ossos:
Retirarei os teus óculos do interior do meu casaco
E ler-te-ei o meu derradeiro poema
Dedicado ainda e sempre a ti.

Coimbra, 3 de Janeiro 2018

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