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PREÇO CORRENTE

Existe uma loja, para os lados do cais das despedidas difíceis,
Onde ainda se pode comprar amor tradicional ao quilo.
Da última vez que fui a esse estabelecimento,
Tão apertado que é só comporta um cliente de cada vez,
A rapariga ao balcão quase me convencia
A comprar todo a amor que a loja tinha em stock.
Já passaram uns anitos e ainda tenho amor espalhado pela casa,
Dentro do prazo de validade.
Nessa loja o amor tinha garantia vitalícia.
Não sei qual é preço actual do amor tradicional:
Desde que deixou de ser cotado em bolsa
O seu preço baixou drasticamente ao invés do produzido em cativeiro
Tabelado a um preço muito inferior, mas de dúbia qualidade.
Nunca tinhas sido demasiado pobre para pressupor
Que tinha direito a mais do que a cópula das minhas mãos consentiam.

Os técnicos económicos vivem atormentados com a inflação:
Os indicadores macroeconómicos anunciam outra crise
Que envergonhará a actual, segundo os mais respeitados profetas.
E o produto interno bruto não pára de descer?

Já ninguém consegue comprar uma vida feliz:
O salário já não dá nem para memórias,  
Nem beijos fáceis, nem lenços de saudade, nem cartas perfumadas;
Ninguém tem posses para fazer uma declaração de amor
E menos para um comprar um coração gélido disposto a ser aquecido.
Os mais abastados, que fazem fila na sopa dos pobres,
Compram a dias para além do destino,
A prestações de duas eternidades e com juros altíssimos.;
E quem ainda consegue comprar o prazer
Vive atormentado com o preço dos cigarros post-mortem.

O agricultor compra a crédito sementes biológicas,
E sem possuir terra fértil aduba com o seu próprio corpo a terra seca.
Perde-se a memória da última vez que o governo comprou chuva.
O pescador lança as redes ao charco
Que se transformou no seu mar interior;
O político compra palavras ao metro.
Uma maratona de palavras dão de oferta um dicionário essencial
De palavras que o povo não tem dinheiro para compreender;
O poeta compra versos esganados:
Com a mais recente revisão da constituição cada poema
Não pode ter mais que uma palavra bonita e dois adjectivos.
As palavras que outrora eram fáceis de pronunciar
Ninguém hoje as rouba ao avarento silêncio;
A beata compra-nos pecados para o seu perdão
E nós compramos-lhes indulgências em segunda mão;
O padre compra orações a pagãos surdomudos;
Os agiotas cobram almas encomendadas pelo diabo;
O aventureiro compra puzzles decifrados
E sorri como quem ganhou uma vida extra num jogo arcaico;
O moribundo compra um desmesurado fato industrial
Para na vala comum abraçar o sono eterno.

Eu hoje fui à procura de tempo.
Estava disposto a dar toda a minha efémera riqueza
Por umas tênues migalhas de tempo.
Cheguei tarde e a loja já tinha encerrado.
Na porta uma folha de papel rabiscada:
- Esta loja a partir de amanhã vende exclusivamente
Relógios com a corda partida.

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