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PACTO COM O DIABO



O corpo abandona a espada que o percebeu.
Neste leito recebo a tua premeditada visita.
A tua voz, criatura das trevas, deixou-me de ser estranha,
As canções com que me embalavas ressoam na minha memória,
E como presa fácil do teu encantamento
Já não tenho medo de adormecer e acordar ao teu lado direito.
Nos sinais que imprimiste à minha pele
O teu nome não se compromete às minhas entranhas.
Talvez o meu mundo seja demasiado pequeno
Para não pertencer à geografia do universo.
Mas onde estavas quando te queria consagrar a minha alma,
A troco apenas do assentar da poeira dos dias secos.
As garrafas da minha sede estão todas vazias.
Impunha-se matar o jejum com o mais eloquente dos elixires.
O vencer temerário das horas da noite
Abafa o meu desejo de vida póstuma.
Não fortaleces a tua oferta que continua pobre?
A minha pobre alma vai a um leilão público,
E será que podes pagar o preço exigido?
A eternidade que ofereces está longe de bastar,
O teu trono é o mais comum dos lugares,
E o teu ceptro não consente as linhas da minha sina.
Se queres vencer a distância que nos separa,
O coração das mais puras das mulheres não é o bastante.
Os dias de inferno já os sinto neste país gélido.
Da sabedoria já ignoro os livros que me tratam pelo nome.
Comer à mesa de reis apenas aguçaria a minha fome,
Por estranhos pratos de degustação.
Ainda não fiz a digestão de todos os séculos
Devorados junto à lareira da minha biblioteca.
Da riqueza basta-me a pureza da tinta no papel por encardir.
Não quero uma urna dourada, nem por fora, nem por dentro.
Os sete palmos de terra fria haverão de bastar
Ao meu desalmado cadáver amortalhado.
Não quero um velório desapressado nem ladainhas em coro!
Uma meia-dúzia de fingidas lágrimas haverão de sobrar.
Não quero um mausoléu, diariamente visitada por mil viúvas,
E por outras tantas virgens ofendidas.
Não quero a bandeira de outras pátrias na minha tumba,
Não quero pedestais que suportem o peso dos céus,
Não quero rua com nomes de zés-ninguém,
Não quero julgamentos de júri de alta condição social,
Nem escorridas missas de sétimo dia.
Sei do teu medo que eu volte a acreditar no teu deus…
Ele abandonou-te, mas nunca esmoreceu a tua fé.

O teu medo exige que eu te peça mais do que me ofereces:
Apenas quero um ponto final bem carregado
Na lápide que exibir a minha enfadonha fronha,
No fim da frase que resumir a minha vida.

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