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RAIO-X DE CORPO QUEBRANTADO

Passem palavra!
Nas ruas mais recônditas, nas praças moribundas,
Nas esquinas polidas, nos becos sem saída…
Passem palavra!
Já dependo das mãos para caminhar:
Em breve os abutres e as hienas
Conjugarão os meus últimos verbos.
Os pulsos quebrados darão de si.
As falanges dos dedos esgravatarão a terra,
Catando a última morada.
As mandíbulas estranham-se perante o pasmado céu da boca.
O colar cervical que Deus me sugeriu para me manter erecto,
De tantas vezes que o pescoço obedeceu à pena capital,
Desculpa-se por já não cumprir a sua missão.
As massivas lesões por esforço repetitivo
Prendem os músculos à letargia das sombras.
O meu querubismo força-me a uma identificação
Com as fotografias mais sagradas.
Quando os desejos tinham cartilagem,
Em cada renovar celeste, sonhar era urgente!
No desfile das figuras geométricas,
Como triângulo obtuso enquadro-me
Com o caminho curvilíneo distendido em linha recta.
Não me consigo sentar junto dos profetas.
De pernas cruzadas deveria poupar os joelhos.
Aconselham-me uma cirurgia para desqueletar o corpo:
No mercado negro os ossos quebrados de poeta
São muito apreciados pelos maratonistas.
De qualquer forma não chegaria a velho:
A subtracção à nascença de um par de costelas
Conferiu-me a vulnerabilidade do crescimento:
Tenho uma escada com a forma da minha esclerose.
Conformadamente concluo que a carne já não ama os ossos.
Se sempre soube encontrar no meu interior
As minhas próprias dores permanecerei por agora quieto.
Se me empurrarem já não vou em frente até ao fim.
Os copos de leite aditivado lubrificam os parafusos
Do sistema esquelético desarticulado,
E para receber as condolências devo-me entregar ao repouso,
Sem premeditação de fuga.
Num dia póstumo ao depararem com os meus restos mortais,
Socorram-se de um dos meus fémures cinematográficos
E façam dele um extraordinário archote:
Assim se faça luz sobre a minha vida.

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