Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de janeiro, 2019

RAIO-X DE CORPO QUEBRANTADO

Passem palavra! Nas ruas mais recônditas, nas praças moribundas, Nas esquinas polidas, nos becos sem saída… Passem palavra! Já dependo das mãos para caminhar: Em breve os abutres e as hienas Conjugarão os meus últimos verbos. Os pulsos quebrados darão de si. As falanges dos dedos esgravatarão a terra, Catando a última morada. As mandíbulas estranham-se perante o pasmado céu da boca. O colar cervical que Deus me sugeriu para me manter erecto, De tantas vezes que o pescoço obedeceu à pena capital, Desculpa-se por já não cumprir a sua missão. As massivas lesões por esforço repetitivo Prendem os músculos à letargia das sombras. O meu querubismo força-me a uma identificação Com as fotografias mais sagradas. Quando os desejos tinham cartilagem, Em cada renovar celeste, sonhar era urgente! No desfile das figuras geométricas, Como triângulo obtuso enquadro-me Com o caminho curvilíneo distendido em linha recta. Não me consigo sentar junto dos profetas. De pernas cruzadas deveria poupar os j...

PACTO COM O DIABO

O corpo abandona a espada que o percebeu. Neste leito recebo a tua premeditada visita. A tua voz, criatura das trevas, deixou-me de ser estranha, As canções com que me embalavas ressoam na minha memória, E como presa fácil do teu encantamento Já não tenho medo de adormecer e acordar ao teu lado direito. Nos sinais que imprimiste à minha pele O teu nome não se compromete às minhas entranhas. Talvez o meu mundo seja demasiado pequeno Para não pertencer à geografia do universo. Mas onde estavas quando te queria consagrar a minha alma, A troco apenas do assentar da poeira dos dias secos. As garrafas da minha sede estão todas vazias. Impunha-se matar o jejum com o mais eloquente dos elixires. O vencer temerário das horas da noite Abafa o meu desejo de vida póstuma. Não fortaleces a tua oferta que continua pobre? A minha pobre alma vai a um leilão público, E será que podes pagar o preço exigido? A eternidade que ofereces está longe de bastar, O teu...

POETA PROCURA DESESPERADAMENTE MUSA PARA POSSÍVEL POEMA

                                       Para a Aida, Executa-se a extrema publicação deste anúncio: O Poeta procura desesperadamente Musa para possível poema. Por ser muito exigente com as nove musas Estas já apresentavam fortes sinais de cansaço e desgaste, Pelo que o Poeta prescindiu dos seus serviços. Desde então está suspensa a sua actividade de criador. Se esta situação se mantiver por mais tempo O Poeta poderá ser declarado estéril. Nem a décima musa, que um amigo cavernoso lhe emprestou, Conseguiu que o Poeta empunhasse a caneta adormecida. A Musa escolhida deve ter uma licenciatura em inspiração, Preferencialmente pela Universidade da Vida. Deverá ser mais jovem que o Poeta, E se a sua pele já apresentar alguma aridez Deve possuir um documento oficial ...

LIBERDADE

EPITÁFIO

VAIDADE

Quando escolho o significado das palavras Que temperam os movimentos que negligencio Ainda ninguém perscruta o meu diário. A sombra retrai-se em cada carícia Da luz que trespassa a janela opaca. Corto as unhas demasiado rentes Para ansiar arranhar as paredes E despadronizar o papel pardo que não escolhi. Tenho a vida guardada nos poemas de infância Onde me declaro inocente Pelos brinquedos que não possui. Escreve-se a giz a data de hoje no obituário negro, Em forma de coração mais-que-perfeito, Mas não respeito o chamamento do meu nome. Peço silêncio até terminar o meu discurso! E a cabeça que não estoura? Pelos meus olhos podem imiscuir-se na minha profundidade. A temperatura já vai demasiado alta Para merecer o crédito da caixa dos comprimidos. As portas de emergência do corpo Devolvem ao mundo a minha natureza. A tosse exacerbada desconfia do xarope caseiro, E a caneta em privação alcoólica treme Quando enjeita adjectivos para ...

EXPECTATIVAS FRUSTRADAS

Frente a um espelho embaciado implantaram-me um nome próprio: A identidade estava oficialmente imposta. Auscultaram-me a alma e trincaram-me o corpo cru. Pediram-me um singelo milagre como prova da minha boa-fé E eu mantive-me sobriamente sem chorar. Depois deram-me um calendário para todos os anos E pediram-me que apregoasse o futuro: - Resta muito tempo para o ano fértil? Pediram que asfixiasse o perfume de todas as flores Num só sopro nobre de primavera. Respirei fundo e quase me sentia vivo. Ao questionarem-me pela natureza da jarra burguesa, Na minha luxuriosa mesa de cabeceira, Comovi-me com os lírios e espilrei demasiadas vezes. Vestiram-me de todas as cores e expuseram-me ao sol. Quando venerei um naco de pão duro já me tinham pedido abundância: Por vergonha não confessei a minha fome. Deram-me um telescópio e mandaram-me descobrir deus: Numa folha de papel, à escala do universo, Desenhei ao centro um ponto demasiado perfeito. Confiaram-me as notas da melodia do silêncio E ...

BOLETIM DE VACINAS

Respondo presente à chamada! Um passo em frente, e de cócoras suporto O peso do mundo ao pôr-do-sol. Tenho direito a confessar todos os meus suicídios. Por coragem abro as mãos vazias, E quando todos os sentidos desconfiam dos aplausos Sento-me à beira do caminho curvilíneo. Em tábua rasa escrevo a última palavra proibida E se eu insistir em conjugar verbos no futuro Devo pôr termo ao contrato da vida. Ainda no ventre de minha mãe, Bárbaro nesta pátria imaculável, Inoculo-me com os chamamentos Em que a madrugada me amamenta. - Não olharás de frente o Sol! - Não te deterás para sonhar! - Não adquirirás medo de ter medo! - Não pronunciarás todas as palavras! - E, por fim, não farás silêncio em teu nome! Temo que se correr para devorar o tempo A memória não se escreva em traços leves. A imunidade adquirida centra-me Numa história por me contar. Na consulta de saúde do viajante Recebo a vacina para a febre arco-íris: Dou-me como preparado para ponderar o mundo Em...

AMOR PROVÁVEL

A boca seca de tantas manhãs desertas Permitiram-me patentear elixires de expurgação: Esta praia possui todo o tempo que me resta! Os pecados que outrora aqui se cumpriam, Na cíclica penitência do teu corpo, Purgam-se na maré-cheia da saudade. Pressinto-te para além do tacto das fotografias Desarrumadas pelas paredes centrífugas deste litoral E como tenho não vocação para o desespero Insinuo-me ao luar em uivos de vento. Possuo o espaço mínimo para permanecer Acordado a assistir ao fim do mundo. Os segredos confiados são as grades do coração, E ao teu umbigo, onde antes tudo nascia e findava, Concedo hoje a humilde paz interior. Por razões óbvias não me comprometi em nenhuma carta de amor, E a razão é um sítio estranho por situar. Encontro-te em cada grão de areia devolvido à costa: Em cada murmúrio um recém-nascido por aperfilhar. Manténs a beleza nupcial de um flash instantâneo, E não esqueceste o dialecto em que nos interpretávamos. Num premeditado gesto fúne...

VERDADES ABSOLUTAS

A lei da gravidade prende-me à terra onde concebi raízes E na madrugada desafio a fotossíntese das plantas superiores. Respiro fundo e redesenho o círculo mais-que-perfeito  A que chamo mundo, sem, contudo, o perceber. Multiplico os dias que trago na saudade pelos da memória do futuro, E dou conta que contrario a esperança de vida facultada aos poetas. As desauridas contas do meu rosário já não contam! Penitencio-me com os teoremas que o salário mínimo Me permite comprar em época de saldos extraordinária. Se confesso os meus medos alguém, cobardemente, Desafia a minha coragem desarmada. Amaldiçoado tenho mais hipóteses de ser Certificado de santo, com cátedra na esfera divina; Existimos treze à mesa e impõe-se que se revele um traidor: Beijo cada um de vós pela beleza das vossas primeiras esposas. - Esperem! Morrer por amor já está fora de moda! Quem ainda aqui perdura mantem expectativas Pelas minhas desculpas de me sujeitar a estar vivo. Os anarquistas reafirm...

PREÇO CORRENTE

Existe uma loja, para os lados do cais das despedidas difíceis, Onde ainda se pode comprar amor tradicional ao quilo. Da última vez que fui a esse estabelecimento, Tão apertado que é só comporta um cliente de cada vez, A rapariga ao balcão quase me convencia A comprar todo a amor que a loja tinha em stock. Já passaram uns anitos e ainda tenho amor espalhado pela casa, Dentro do prazo de validade. Nessa loja o amor tinha garantia vitalícia. Não sei qual é preço actual do amor tradicional: Desde que deixou de ser cotado em bolsa O seu preço baixou drasticamente ao invés do produzido em cativeiro Tabelado a um preço muito inferior, mas de dúbia qualidade. Nunca tinhas sido demasiado pobre para pressupor Que tinha direito a mais do que a cópula das minhas mãos consentiam. Os técnicos económicos vivem atormentados com a inflação: Os indicadores macroeconómicos anunciam outra crise Que envergonhará a actual, segundo os mais respeitados profetas. E o prod...

POR UM DIA

Por um destes dias chegará a notícia da tua partida. Nenhuma lágrima será por mim vertida. Não gritarei palavras proibidas, nem farei minutos de silêncio, Não confrontarei o meu deus nem porventura o teu. Como não tiveste tempo para te despedires, meu poeta, Perguntarei por ti a todos os caminhantes que comigo se cruzarão Na estrada que conduz aos portões da tua última morada. Faltarei às cerimónias fúnebres apressadas Que os poetas deitam mau cheiro depois de mortos, E ficarei à tua espera no lugar habitual. O jornal trará a tua fotografia a preto-e-branco Tens razão, meu amigo, é a fotografia da tua formatura! A mesma fotografia, a única que que se te reconhece, Que te tiraram sem pedir autorização quando recebeste o diploma de poeta. Dias sem fim dedicar-te-ei poemas malditos E sem proferir o teu nome de guerra Encomendarei missas em sufrágio da tua alma. Pertencer-me-á, como combinámos a autoria do teu epitáfio, Mas tu não cumpriste a tua parte...

PRELIMIARES

Revelo-me na noite desesperada de profundidade, Sem receio do brilho das estrelas arrependo-me da saudade E num deslize premeditado liberto o teu nome Como se nunca o tivesse esquecido ou arrenegado. Ignoro os fantasmas obscenos que me devolvem o medo. Natural da constelação das criaturas sem músculo cardíaco, Preciso-te na véspera de nunca ter acontecido. Hoje e sempre, nunca foi outro este o tempo, E se eu ainda te resgatar com vida vou arrepender-me De todos os meus crimes renunciados. Num gesto exagerado de abdicação Converto alquimicamente lágrimas em cubos puros de gelo. Vendar-te os olhos é ainda pronúncio de reconhecimento. Ignoro o espelho partido pelo reflexo do meu rumor: Permanece intacta a memória dos dias por cumprir. Um fado longínquo de Amália devolve-me o dever do silêncio. Vejo a prateleira nua onde residia a tua colecção de livros libidinosos: Apenas restam os sagrados e as gramáticas Onde se conjugam todos os verbos que inve...

OS NECRÓFAGOS

Hoje é o dia de proceder ao inventário das coisas fúteis: Reiteraram-se os órgãos cansados, os ossos quebrados, A pele viscosa reconhece as rugas espelhadas, O coração, vulgar e despreocupadamente cansado, Não vai além de um quarto de quilo. Do fígado sei as lânguidas bebedeiras, E dos pulmões a melancolia das madrugadas. Quando pensava largar o meu corpo à Ciência A defesa do consumidor alertou para a falta de qualidade da minha alma. Tinha para mim que a carne apesar de estar fora do prazo de validade Ainda daria para aguentar mais duas ou três revoluções Da ordem natural das coisas. Sinto um calor quase maternal: Começam pelos olhos de forma a eu não conseguir olhar para dentro. O coração é embalado e após o tempo de quarentena previsto por lei, Será o prato principal da mesa real. Debicam-me as entranhas em espasmos de degustação. Uma multidão sem preceitos suplica o meu bucho E nem os preconceitos das minhas tripas Adelgaçarão o apetite de nobres criaturas domé...