Reúnam a superficialidade e incendeiem o
juízo
Em que me praticam. Os espelhos
quebrados
Na reciclagem satisfarão outros poetas
côncavos
E não decretem que foi por me ter dado a
ver,
Demasiadas vezes, que descurei a sombra
desinformada.
Devolvam as cartas trancadas e
sacrifiquem o lacre
Nas velas que teimam a minha luz fora de
horas.
Não queiram ainda interpretar os
símbolos da pele:
As datas comemorativas são a
consequência natural
De não se ser eterno! Evitem cortar a
direito a substância
Da carne. Subsiste uma cronologia a
respeitar!
Agora que está tudo pronto desmantelem o
corpo!
Não se cinjam aos iminentes focos de
infecção
E prefiram a interioridade onde mais me
inquieto.
As mãos que me vasculharem por dentro
Nem precisarão da legitimidade do
álcool!
Encontrem sinais de que já nada havia a
fazer…
Pelos meus refractários olhos sem brilho
Há muito que deveriam saber da
necessidade
De consolidarem-me as pálpebras
cerradas.
Pelo abdómen distendido quem quis
censurar-me
Não teve o conforto de abstrair-se das
notas de rodapé
Da minha biografia ditada em plena
digestão.
Só assim se explica quem não fui de
barriga cheia!
Agora, como já pesaram o estômago,
respeitem
Quem se deu demasiadas vezes a comer à
mesa farta
Sem que ninguém tenha preferido saciar
A sede antes do brinde ao meu sacrifício.
Coloquem para um lado o que nunca me fez
falta
E para o outro o que sempre foi
excedentário!
Esclareçam os pulmões dos dias
rarefeitos
Em que não basta respirar fundo para da
coragem
Se possuir o derradeiro passo além da
fronteira.
Não mostrem respeito pelo coração
mirrado:
Os fósseis são a prova viva do que não
fomos…
Aos rins arranquem-lhe as dores
prematuras,
E como a minha filha faz colecção de
pedrinhas,
Em forma de órgãos vitais, escondam-lhe
Que nasci impunemente numa pedreira
desactivada.
A vontade de conhecer todos os
cemitérios
Que sabiam da minha divinatória
humanidade
Foi substituída pela minha incapacidade
urinária
Para marcar o território onde fui
tratado como um cão.
Esvaziem-me e não encontrem indícios
Que me entreguei integral. Pretensamente
Como solidifiquei demasiados ossos
Para quem nasceu para ser articulado
Prefiram aqueles em que descalcificado
Me queixava da mudança de cada estação.
As melhores marionetas continuam a ser
aquelas
Desossadas que apanham o comboio em
andamento
E que não necessitam de muitos fios de
nylon
Para cumprirem o seu papel na história
que se conta.
Expliquem as crónicas dores das costas
largas
Por andar demasiado curvado ao relento.
Sei que é insensato na hora do
esvaziamento
O mais comum dos mortais mostrar-se tão
erecto,
Mas se ainda quiserem entrar na minha
cabeça
Apelem-me aos sentidos na desconstrução
da memória.
Da loucura retenho a tentação dos
desejos proibidos
E da razão a alma arrependida do corpo
prometido.
Por fim, depois de assado, devolvam-me a
corda
Que poderei voltar a sentir a
necessidade
De pendurar-me, para aliviar o mundo do
meu peso.
Enquanto poeta, enquanto houver um tecto
de estrelas,
Continuarei a cumprir o dever do sangue
Ao suster-me de cabeça para o chão!
Se me acharem salgado a culpa é do mar
interior!
António Miguel Ferreira, Certificado de Garantia, 2019
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