Em
memória da minha professora de Química,
Neste laboratório já se testaram todos os elementos da tabela
periódica na construção da fórmula da felicidade. Já todos reagiram frontalmente
uns contra os outros. Chegaram-se a misturar três elementos, dos mais nervosos
que se conhecem, mas sempre que a explosão acontecia apenas se descobria mais
um tipo de ódio.
O primeiro cientista que quis do amor a substância foi um cientista
louco que ficou para a História conhecido como Deus-Todo-Poderoso. Precipitou-se
a misturar numa amálgama todos os elementos conhecidos, mas o que no fim lhe parecia
ser o amor, era apenas terra da mais crua e do tipo mais comum, que se pode
comprar em qualquer loja de jardinagem.
Tenho na mão uma chave antiga que não cabe em nenhuma fechadura!
No ano em que desvendei a composição do amor, a minha primeira professora
de Química consentiu que o de matemática reagisse com ela. Onde ela antes via
reagentes passou a ver produtos de reacção e onde ele via números ordinários
passou a ver teoremas. Em pouco tempo os dois já formavam uma molécula. Como
tinha conseguido o professor carrancudo, solteiro por intenção e gordo por
vocação, conquistar rapidamente uma mulher tão bela e esguia? Ela, era a
perfeita combinação do seu pai asiático com a sua mãe selvagem que nunca
conheceu, e ele somente o fruto proibido de uma submissa a Deus que nunca
discordou das penitências impostas pelo padre com quem já a sua mãe se abria.
O professor de matemática convidou-se para jantar em casa dela. Um
homem conquista-se pelo estômago! Ele levou potássio para a refeição e toda ela
era liquidez. Mas a mãe do professor não disse ao filho pródigo que há mulheres
neste mundo que não sabem misturar os ingredientes num tacho. E um tacho não é
uma panela de pressão e os elementos numa proveta comportam-se de forma diferente
que numa cozinha, por bem mais equipada que esteja. “- Ela haverá de aprender!”
– foram as últimas palavras do professor antes de começar a emagrecer! Ele fez
as malas e a sua mãezinha seguiu para um asilo. A campainha tocou e o correio
trouxe o livro de cozinha encomendado com carácter de urgência. Antes do fim do
primeiro período já se consumara a soma das duas disciplinas.
Antes a professora destinava os primeiros cinco minutos de cada aula à
segunda-feira para falarmos das substâncias que nos fizeram felizes no fim-de-semana.
Agora destina os últimos cinco minutos da aula à sexta-feira para falarmos das substâncias
com que esperamos reagir no fim-de-semana seguinte.
O professor mudou-se para casa da professora há apenas dois meses e já
se nota na roupa. O perímetro do seu cinto perdeu dígitos e ele impacienta-se comigo!
E eu pensava que era o seu aluno favorito! Deixou de me chamar ao quadro para
dar solução às equações do terceiro grau. Apeteceu-me perguntar-lhe: que culpa tenho
da professora não ser boa na cozinha? Peça-lhe que tempere o coração antes de o
servir à mesa!
O Carnaval trouxe uma professora substituta para ensinar o português
que restava. Porque não seria um amor de perdição, que tenho dentro de mim tenho
todas as personagens que não couberam dentro dos livros da minha vida, não me
lembro da professora que partiu! As aulas de português eram a seguir às de
matemática. Entre as duas não havia intervalo. O professor de matemática entregava
em mão as chaves da sala à nova professora de português. O amor na escola não
precisa de recreio?
Por esta altura os alunos mais desatentos assinalaram que a barriga da
professora de Química começava a inchar. Lá em casa, a professora de Química não
deixou de notar que o seu o companheiro começava a encontrar os adjectivos que
antes lhe faltavam para qualificar as refeições que ela preparava. “- Inacreditável!
Como é possível uma professora de Química não saber cozinhar? Não ensinam isso
na faculdade? Isto está intragável! ” Antes ele limitava-se a comer,
acrescentando apenas mais sal. “- E como é possível um professor de matemática
não saber que numa barriga grande não cabe a paciência de uma mulher que não
nasceu para o fogão?”. Ele bateu com a porta!
Estou a ir demasiado depressa? Já estamos no início do terceiro
período. A barriga da professora de Química não tem mais do que dois meses! Querem
que eu vá mais devagar? E como sei isto tudo sobre os professores se a escola
tinha muros altos? Como sei que era amor e não outra coisa qualquer o que se
ensinava nas aulas de Química? Os alunos que não conhecem a vida íntima dos
professores são os que precisam de estar mais atentos nas aulas. Eu só me
sentei sempre nas primeiras mesas, para vencer o medo pelos quadros negros. Que
se dane a ordem alfabética!
O amor no fim do segundo período já estava chumbado! Já não seria
preciso o terceiro. O professor de matemática regressou à sua casa na
sexta-feira santa. A sua mãezinha preferiu continuar no asilo, onde todos os
dias a sua colega de quarto lhe fala da ressurreição. Ela comprometera-se a não
morrer devagar. O professor agora não tinha ninguém para cozinhar. Mais vale um
mau cozinheiro que uma cozinha às moscas!
Aconselhada pela professora de biologia, sua amiga do peito, a professora
de Química foi a Espanha fazer um aborto. Quando voltou vinha mais esbelta e eu
sorria quando era chamado à pedra. Certa vez estive quase a desenhar um coração,
mas o meu nome era demasiado grande para caber num pequeno coração. Devido à
contenção de giz, de todas as vezes em que não achei o resultado certo para a
equação da origem da vida voltei para o meu lugar feliz. Na presença da professora
a minha reacção era mais física. Espreitava-lhe o decote, e perspectivava-lhe o
coração a bater por mim. Voltava ao lugar e a minha nota a educação visual não
era digna de um artista da vida. Ainda hoje não sou bom a desenhar corações!
Neste ano os programas de Química e de Biologia cruzavam-se e eu só pedia
para não misturar as respostas. Seria razoável a Biologia se não fosse medíocre
a Química! Certa vez quis saber quem abusou do giz e no coração que eu nunca
desenhei no quadro colocou os nomes da professora de português e do professor
de matemática. Cheguei a pensar que teria sido o próprio professor que queria magoar
a professora de Química. Mas aquele quadro não era o de Química! Então aquele
coração seria um aviso para mim? Talvez o professor tivesse medo de que, como
me apaixonei pela professora de Química também me arrebatasse pela de português.
Os bons alunos têm de ter paixão por todas as matérias. Mas eu já disse que não
era um bom aluno!
A professora de Química sabia da minha atenção ao decote, senão porque
teimava em chamar-me ao quadro para acertar equações sem solução? Já do decote
da de português nunca ultrapassei o limite de linhas para descrever as suas
mamas de uma perspectiva modernista. Eu prefiro os escritores que constroem
personagens de mamas grandes. Qualquer mulher que use menos do que a copa C não
foi uma personagem muito desenvolvida pelo seu narrador.
Acabei de saber pela internet que a professora de Química morreu... A
internet já trouxe tantas mortes à minha vida! Se não fosse a internet muitas
personagens da minha vida ainda estariam vivas. Um dia haveria de me lembrar
delas e concluir pela força da matemática que já teriam morrido. A internet
mata as pessoas demasiado novas! Não as deixa envelhecer nas nossas vidas… E o
professor de matemática? Que será feito dele? Ouvi dizer, há uns anos, que ainda
fazia contas de cabeça. Se os relojoeiros fazem colecção de relógios os
matemáticos não deveriam coleccionar máquinas de calcular? “Deve estar gordo? –
questionei. - Nem deve conseguir sair de casa! - Não! Nada disso! Casou com a
professora de português, e ela pô-lo a dieta.” Pesava as refeições e na cama
queimava o excesso de calorias! – pensei. “- E ela continua a pecar por excesso
nos adjectivos? - Tornou-se escritora! Constrói poemas com números primos. Os
livros dela são best-sellers. Não há economista que não compre os seus
livros. Há teses sobre teses de doutoramento sobre a sua obra. Dizem que salvou
o mundo de uma nova crise económica. Não deixará de merecer o Nobel. Só não se
sabe se o da literatura se o da economia! É frequentemente citada por
académicos. O que faltava à economia era inspiração! Claro que o professor de
matemática contribuiu para esta eloquência económica. Se ela lhe pôs os pontos
nos iis na sua barriga, ele mostrou-lhe os números que estão por detrás dos
números. Porque não prestei mais atenção nas aulas de português? Se eu me
tivesse apaixonado pela professora de português hoje teria mais dinheiro nos
bolsos!
A professora de Química nunca me mandou prestar mais atenção porque eu
nunca tirava os olhos dela. Era impossível alguém saber tanto sobre o interior invisível
das coisas! Quando os reagentes se entregavam eu via o amor e o ódio
acontecerem. O interior que a professora de biologia me mostrava não era assim
tão rico. Nenhum dos animais que dissecou vinha no programa. Pedia aos alunos
para trazerem os seus animais e ainda hoje não tenho um animal de estimação. Como
ela nunca me mostrou o amor para mim, era inconcebível um sapo ou um gato não
se apaixonarem. Talvez por isso não me apaixonei por ela.
Onde foi sepultada a minha professora de Química? Não há uma lápide no
chão do laboratório? Os santos não pertencem às igrejas? Como nas igrejas, os
alunos pisar-lhe-iam a sepultura e ela lá em baixo reagiria com um sorriso. Os
professores devem suportar o peso dos alunos! Queria colocar-lhe um pouco de
potássio na lápide, para quando chovesse ela se lembrar que o professor de
matemática trocou-a pela professora dos adjectivos. Como pode alguém preocupar-se
mais com o estômago do que com o coração?
Regresso à velha escola para ver se os professores modernos andam
cansados… A primeira sala é a de Biologia. A porta está entreaberta. O cheiro
que irradia é o de um campo de batalha. Espero encontrar a professora de biologia
ali morta. Já perguntei por ela a todos os meus colegas nas fotografias e ninguém
se lembra desta professora. Também nenhum regressou a esta escola em ruínas. Nenhum
se lembra de dissecarem animais e nenhum pressupostamente depositou o seu
coração nas mãos da professora de biologia, que nunca o devolveu. Encontrei sobre
as mesas, em cada lugar, um coração a apodrecer. Eu costumava sentar-me ali! Se
aquele é o meu coração já não o quero! Fecho a porta à saída e concluo que de biologia
não preciso de aprender mais do que a morfologia do coração. Se estamos condenados
a evoluir, quem sabe, se um dia, a espécie humana poderá viver sem o coração?
Queria o meu intacto para o devolver à professora de Química. O
laboratório está trancado! Parece que perderam a chave e ninguém aceita arrombar
a porta devido à fragrância doce que vem da sala. Todos temos medo dos
fantasmas dos outros! Respiro fundo e acredito que naquele laboratório há
reacções químicas em ponto de ebulição. Levo a mão ao bolso instintivamente.
Recupero a memória da chave no bolso. Sempre me disseram que era a chave de um
caixão. Possua-a desde que aprendi que tudo o que colhemos vem do que semeamos.
Instintivamente levo-a à fechadura e a porta abre-se. Romba como sempre foi.
Entro e tranco a porta por dentro.
Quando eu morrer, professora, prometo ser um aluno mais aplicado...
Estarei atento a descobrir o amor nos pequenos detalhes da explosão do meu corpo.
Mas não posso deixar-lhe o meu coração para reagir com o seu… Deixei-o com a
professora de biologia que se propôs dissecá-lo em busca do amor que eu não nutria
por ela.
António Miguel Ferreira, 2019
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