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CALIGRAFIA



São maiúsculas todas as letras que me comovem.
Troco o nome de quem me identifica. Entregam-me
Os símbolos de cada dia e devolvo o significado
Comum para as palavras calendarizadas.
Nada fica por dizer a seu tempo, ainda que eu escreva
Demasiado rápido para não haver uma ordem preestabelecida
Nos graus superlativos do silêncio. Até gritar
Ninguém se capacite da minha mudez. Expusessem-me à dor
E no plural não me entregaria em sacrifício!
As vogais mudas merecem ser proferidas
Para consolo das consoantes que arranham a língua.
Quando abro aspas estendam que ainda posso ser fútil
E ao ter medo de ser mal-interpretado, adiar a fuga.
Na tragédia de sentir os poemas escritos a céu aberto
Fedem os corpos miseráveis em que me senti vivo.
As palavras que morrem com um ponto final
Não pedem que se acrescente adjectivos
Aos sujeitos que vivem desta lixeira!
Há aqui depositados suficientes poemas meus
Para julgar que não me faltarão as palavras ordinárias
Para o discurso onde fingirei estar confortável com o calão
Em que transformaram a minha primeira língua.
Os poetas que trago dentro se mim sabem
Da urgência de regurgitar todos os versos
Que não pertenceram a um refrão harmonioso,
Como se a vida já não merecesse ser cantada.

Se são ferozes as palavras aceitaria o açaime!
Tenho medo de aqui permanecer de cortinas abertas
Com o espectáculo a terminar
E as pessoas da primeira fila a aplaudirem...
Nem todos compreendem os jogos semânticos
E como não respondo pela mãe dos outros
Não julguem que o frio à flor da pele
Fortalece as palavras remetidas ao interior.

Daqui a uma eternidade não serei
Portador de uma letra inquestionavelmente feliz…
Conspiro o narrador que mantém a sua história
Por contar… Ocupo menos espaço do que o consentido
E a ironia de percorrer cada linha traçada
Em perseguição de palavras difíceis
Leva as crianças a duvidarem do significado
De cada palavra que antecede outra que já se conhece.

É política deste estabelecimento
Onde me apresento despido
Não divulgar as tendências na moda!
Cada um consome as palavras que sobraram do antecessor
Os monólogos têm a duração de um parto
Arrancado a ferros. Se eu ainda chorar,
Com os meus novos pulmões, concluam
Que estou farto de finais felizes.

Continuo a comprar romances apalavrados
Em feiras clandestinas! O único coração à venda
Era demasiado grande para não garantir
Ao portador a necessidade de um final feliz.
Na semana passada viram-me a comprar
Um atlas anatómico de um século sem luz…
E nada foi feito! Ao procurar a alma
Não encontrei apenas vestígios de amor…

Ao entregar-me seja porque o que assinei
Está ilegível e não pronunciarei o meu nome de guerra
Porque nunca desafiei a paz entre as palavras
Mais íntimas. Não me mandem poupar verbos
Que já entreguei os que suportei.
Queiram-me recortar os conceitos pelo picotado
E a misturá-los decifrem o significado
Da canção de embalar de minha mãe.
De olhos fechados não preciso
De muitas palavras para não sonhar…

Se ainda quiserem contar-me as letras em que me construo
Digam que a matemática moderna não é suficientemente rigorosa
Para persuadir alguém a traçar um grande raio de acção.
Há demasiadas ciências exactas para se poder calcular
O número em que de defino pela raiz quadrada de zero.
É impossível que o meu primeiro professor não tenha reparado
Na escassez de giz para configurar uma conta obrigatória.
Fiquem satisfeitos por saberem que tenho pressa
Em que o resto desta divisão seja absolutamente zero.
Ao multiplicar-me pelos sítios onde posso ser encontrado
É aqui que aprendi a não ter um número preferido…
Gostava do primeiro até me dizerem que não conheceria o último.
Há contas impraticáveis de cabeça e o que resta
É fazer uma regra três simples para ver a parte que nos toca.

Ensinassem-me a escrever sem medo de não ser lido
E eu refutaria todos os números da esterilidade.
Ainda ontem excedi as palavras que fazem sentido
Na boca de um homem que aceita o papel quadriculado.
Conformado ao abecedário imponho à vertical
Vozes, embora não ache que a altura máxima de uma linha
Seja suficiente para uma letra de nome próprio.
Felizes os analfabetos que preferem as letras
Mínimas para a evocação da eternidade!

Espero por um molde com as minhas letras preferidas.
Não preciso de todas porque há novos sinónimos
Para as palavras ainda por nascer. O que ficar por dizer
Poderá já ter sido proferido por outras palavras.

Por agora, tenho demasiadas expectativas
Na palavra que não tenho na ponta da língua.






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