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O PODER DO TOQUE



Tudo o que toco de inerte não é esta a matéria-prima.
Preciso de ausentar-me para dizer que aqui me encontro.
De vil tenho o dom de reduzir a pó a substância
De que se fazem os sonhos na entrega do corpo.
Ao regressar do mundo dos mortos que não me completaram
Prolongo até ao infinito o desejo da carnalidade
Não possuir uma alma desarticulada de luz e sombra.

Magramente conformado ao pão que sobra de cada dia
Prefiro as migalhas no desafio da multiplicação.
A culpa por ainda não haver cura para esta e outras epidemias
Deve-se ao facto de quem não se dá a comer
Ainda preferir não distribuir os vivos pelas valas comuns.
Os nossos cães mais raivosos não possuem a capacidade
De desenterrar os que aceitaram a nossa doença
Preferida. E eu sou demasiado curioso para não me pôr
Em contraluz. Quando me propus a ser sentinela do inferno
Não me disseram que todos os que se apresentavam
Possuíam salvo-conduto. Analisem os sinais etéreos
E concluam, de imediato, que aquele que haverá de vir
Sabe demasiado do inferno para negociar com os anjos.
Como a cabeça de São João Baptista já foi servida
Pontapeio, no consumar da distância, os objectos volumosos
Que traem a forma perfeita na órbita do pensamento.

Como palpiteiro tenho o dever de não esconder
Dos apóstolos do deslumbramento os segredos
De quem se apresentar desalmadamente de carne e osso.

Mas não vejo até onde quer ir a mulher despida,
Com o coração vazio, que pede flores para a sepultura
Onde não se encontra o seu primeiro amante!
Os demais pregadores são casos consolidados de insucesso
Social! Descalcem o paralítico das mãos esfoladas
E entreguem as suas sapatilhas de última geração
Ao rapaz descalço que não tem para onde ir.
Ao cego enfadonho, sem dinheiro para não ver
Vencida a conta da electricidade, sem remorsos,
Roubem as lâmpadas e quebrem os espelhos.
Ao surdo devolvam o grito com que aprendeu
O mundo das palavras mais difíceis de murmurar.
Jamais tornem público que o rei que por aqui
Passou não aprendeu a discursar por respeito
Ao povo que herdou, habituado a esperar
O pior em cada revolução geracional.
E, por favor, não digam à mãe cansada
Que é por esperar demasiado do filho pródigo
Que este ainda não chegou à terra prometida!
Mintam e asseverem que ele prefere estar sentado
À direita do pai. De quem já nada se espera.

Completo o tempo do forno dispara o alarme de incêndio.
Mas por dentro ainda é de carne-viva
Aa minha memória episódica. Circunstancialmente.

António Miguel Ferreira
Certificado de Garantia, 2019





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