Aos que nunca partiram…
Não me lembro de não pertencer!
Regressei de todas as vezes que virei
costas
Postumamente. Daqui não cheguei a
partir.
De cada sol aceitei apenas a inspiração
Do dia seguinte e hoje fatalmente não é
tarde
Para o exílio. Ainda não deram pela
minha falta.
As rugas onde encaixo trazem as feições
Do meu primeiro avô. Habituei-me a
enfrentar o Cristo
De braços estendidos e a lembrar-me de
que quem
Talhou a madeira, em forma de cruz,
No altar da capela da minha infância,
Impunha o respeito da minha mãe à mesa,
Sem que ela questionasse os irmãos mais
velhos
Pela ordem natural das coisas
genealógicas.
É sensato admitir que se não fosse o meu
avô
Esta capela não apelaria à minha
humanidade
E eu não teria fé que a senhora do altar
à direita
Me piscou o olho durante a missa em
sufrágio
Do homem que forneceu a madeira para a
cruz do seu filho.
Tudo é sombrio para não esconjurar a luz
ténue:
Até os vitrais que reflectiram o
primeiro arco-íris
A que tive acesso partiram-se ao
pormenor
De não serem permitidos velórios
nocturnos.
Já não espero mais do que o negro
fingido
De todas as cores que me varrem por
dentro.
Ainda preciso de alguém que me ensine a
disparar…
Quero acertar no pardal eléctrico
predisposto a fugir
Do fio que traz electricidade à capela
da minha infância.
Mas o revólver apontado à cabeça
disparou primeiro
E eu fiquei a perguntar porque os aviões
Completavam o voo dos pássaros rasantes.
A espada impossível sobre o corpo
horizontal
Legitima a partida de quem não nasceu
para conquistar.
Porque nunca ninguém procurou pelo rapaz
perdido
Dentro de si? Quando não se sabe do fogo
a intimidade
De um corpo arrefecido qualquer leito é
tardio
Para não desejar acordar na refutação
dos erros.
Tragam a espada do meu primo que não é
de madeira,
Nem a cruz do meu avô é de ferro
fundido!
Continuo preparado para afogar-me no rio
Onde fui pescado, mas este sítio está
demasiado limpo
Para regurgitar quem fez de mim
pescador.
De homens a fome de Deus estende-se
Até à raiz e não me contento com o fruto
Do ventre de Maria Cheia de Graça.
O meu avô já apodreceu, mas a cruz
continua viva.
Uma cruz de madeira tratada dá para duas
eternidades!
Talvez se tivessem tratado o caixão do
meu avô
Com o mesmo produto que a cruz recebeu
A memória do meu avô se mantivesse
incorrupta,
E eu olharia para o Cristo da capela da
minha terra
Que ainda lá está crucificado, com mais
compaixão.
Não encontrei a primeira espingarda do
meu primo,
Pronta a disparar. O pardal está cansado
Há demasiado tempo que aguarda
Que o meu dedo encontre o gatilho
ansioso.
Mas o que eu gostava era da espada
entregue ao peito…
Se não posso roubar a cruz ao Cristo do
meu avô,
Nem desenterrar a espada do meu primo,
Porque continua a Maria a piscar-me o
olho?
António Miguel Ferreira, Certificado de
Garantia, 2019
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