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Mensagens

A mostrar mensagens de 2019

BOAS FESTAS PARA O MUNDO POSSÍVEL

Por esta porta entra o condenado que apenas deseja que lhe aliviem as últimas dores… Entra também aquele que se sair sem conseguir receber explicação para os seus sintomas, prometerá voltar em pior estado de saúde (Ontem, já o informaram que há dores que não se explicam… Apenas se sentem!) Por esta porta entra o turista, vítima de uma das armadilhas da cidade, e entra o imigrante a que apetece colocar um adesivo na boca de tantas vezes que já fez questão de referir que lá fora, no país para onde foi ganhar o seu pão, é que as coisas funcionam bem. Por esta porta entra a velhinha, já sem forças para respirar, que apenas chama pela mãe…. E entra o rapaz que empregou toda a sua força na bola, como se estivesse a disputar o jogo da sua vida. Por esta porta entra o homem de negócios, com a vida arruinada, apresentou a corda ao pescoço… Como não aprendeu a fazer nós para segurar a sua vida, mereceu desta mais uma oportunidade… Entra também o pobre-diabo que sem já nada a perder sabe que...

CARNE-VIVA

O protocolo, em vigor, obriga à revelação Das fotografias na câmara escura onde me desvaneço. No último instante não serão meus os olhos escancarados. Depois do flash estarei pronto a servir! Motivado a assinar a carta de demissão do cozinheiro Suplico-lhe a última refeição decente Para quem amanhã nada terá para comer. Tenho a família oficial à espera para o jantar comemorativo Dos anos que faltam para eu desandar daqui. O prato escolhido tem o meu nome encriptado. Um censor que contrataram, profissional das verdades Práticas, pede-me os títulos da minha ignorância E ao não entregar os conceitos em que me pratico Não sei aconselhar em qual dos menus sou mais apetecível. Desde que a carne esteja bem passada Ninguém sentirá a tentação de me desejar cru. Estou preocupado com a minha filha que não sendo vegetariana Nunca me viu como uma natureza morta! Na hora de pagar em redor da mesa posta Todas as promessas que fiz pelos convivas Os joelhos...

ANTIHERÓI

Tardiamente venera-se a forma interior, E por mais sincero que o exterior ainda vos possa Parecer susceptível de inocentar, não caiam na tentação De expurgarem as feridas em que me dilacero. Reservo-me ao direito de deixar de existir. Se as pálpebras mantêm os olhos inacessíveis, Por amor a esta pátria fria, é porque de frente Não enfrentei as vezes necessárias o Sol. Não confundo as sombras com a luz que me vela! Ao pressentir a respiração dos objectos íntimos, Das palavras impugnadas subtraio os significados íntimos, Como se as conclusões óbvias fossem a soma dos medos. Granjeiem as condecorações que não trago unidas ao peito E se queimarem a bandeira que me escancara a alma É porque como apátrida não terei nada a esconder Na hora de ser vencido pela derradeira vez. Não hesitem em queimar os livros proibidos Descerrados aos meus pés. Invoquem a autópsia Da minha autobiografia como se já não houvesse tempo ...

Centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner Andresen

Se Fernando Pessoa simboliza a nossa irracionalidade, quando à beira do precipício ensaiamos a morte e na hora de dar o derradeiro passo recuamos com a desconfiança de ainda não se ter dado todas as oportunidades que a vida merece, se ele é poeta da nossa portugalidade moderna, em que estamos sempre um passo atrás dos sonhos, se ele é o nosso avesso que teima em não se identificar com a nossa superficialidade, já Sophia de Mello Breyner Andresen, de quem hoje se celebra o centésimo aniversário natalício, simboliza o oposto. Se Pessoa simboliza o medo de ser feliz Sophia representa a tentação de ir mais longe, o apelo a não baixar os braços sem dar luta. Mas não se pense que é uma revolucionária, uma Maria da Fonte pronta a pegar em qualquer ferramenta que possa vencer o inimigo. Não! Embora esteja bem armada com papel e caneta. E a História está replecta de exemplos de canetas letais… Ela é uma pacifista que acredita que é preciso explicar aos conceitos o significado do...

ACUSAÇÃO

Este cenário deixa muito a desejar Para a peça das nossas vidas! Não posso deixar de apontar o dedo Ao escultor de estátuas de sal grosso Que ao temperar a alma com lágrimas Impede que quem compra visões do inferno Cumpra o sentido da fome leviana Na hora da reanimação dos esqueletos. Quem abriu os braços pode ser reencontrado Na periferia de um poema em forma de cruz. E só entra em pânico quem não se deu a morrer Na urgência de amar os filhos dos outros. Os protagonistas estão atrasados? Faltaram ao ensaio geral e agora Volta a ser tudo como da primeira vez… Neste palco já se representaram demasiadas tragédias Para se pensar num final ordinariamente feliz. Quem não conspirou estas paredes despidas Não pode agora, por preconceito, gritar Que o tempo está demasiado seco Para a conformação da cor. Estão todos convidados para a estreia Do espectáculo onde os actores fazem deles próprios! Sentem-se na primeira fila, Que todos os outros lugares Estão reservados aos fantasmas, Em...

PLAYBOY DO VATICANO

Acabei de descobrir que o Vaticano também tem a sua edição da revista mais popular entre os homens que pretendem levar a vida direita. Perdoem-me o excesso de linguagem, mas há palavras e expressões que se não as aproveitarmos no momento ideal, um dia perdemos-lhes o sentido. Apraz-me dizer em minha defesa que encontrei a Playboy do Vaticano por mero acaso… E o download só o executei por curiosidade! Não que a pornografia me passe ao lado! Mal de mim se o écran onde se representa a minha vida não tivesse o pequeno círculo no canto superior direito! Para além de preferir filmes de terror, preciso da pornografia para julgar despidas as pessoas que passam pelo meu mundo demasiado vestido. Gosto das pessoas transparentes! Esta revista vaticanal nem me veio parar às mãos fisicamente, senão ainda julgaria estar na posse de um objecto demoníaco. Andava a fazer uma pesquisa ordinária, sobre batinas e hábitos, e deparei-me com esta revista virtual. Não quero resistir à tentação de a abrir! ...

A ADOLESCÊNCIA DO AMOR

Em memória da minha professora de Química, Neste laboratório já se testaram todos os elementos da tabela periódica na construção da fórmula da felicidade. Já todos reagiram frontalmente uns contra os outros. Chegaram-se a misturar três elementos, dos mais nervosos que se conhecem, mas sempre que a explosão acontecia apenas se descobria mais um tipo de ódio. O primeiro cientista que quis do amor a substância foi um cientista louco que ficou para a História conhecido como Deus-Todo-Poderoso. Precipitou-se a misturar numa amálgama todos os elementos conhecidos, mas o que no fim lhe parecia ser o amor, era apenas terra da mais crua e do tipo mais comum, que se pode comprar em qualquer loja de jardinagem. Tenho na mão uma chave antiga que não cabe em nenhuma fechadura! No ano em que desvendei a composição do amor, a minha primeira professora de Química consentiu que o de matemática reagisse com ela. Onde ela antes via reagentes passou a ver produtos de reacção e onde ele via n...

PROMESSA

Um destes dias súbitos Voltarei a cravar-te os incisivos, A rasgar-te o peito ansioso, E no alvorecer do coração Preferirei dar a lamber-te As primeiras feridas circunstanciais. Da inveja de quem se mantém por morder Nascerá o sentimento de culpa Pelas noites de abandono. Ao sacrificar-te no altar do meu corpo Ainda não sou eu quem pertence À fotografia em que não me convocas. No completar de cada respiração Guardo memória dos desertores: Saltar de pedra em pedra para transpor O rio do esquecimento é usurpar a culpa Do inverno dos sobreviventes! De olhos vendados visito o fim Do mundo. E se de pé tenho o hábito De fugir pelos crimes imputáveis Não confessarei as ordinárias cinzas Às raízes que me aprofundam. De todas as formas o meu coração Pertence à tua colecção de triângulos. As larvas que se apoderarem do corpo, Em letárgico estado de decomposição, Explicarão a necessidade voraz De justificar a minha longa espera. Se me ...

CALIGRAFIA

São maiúsculas todas as letras que me comovem. Troco o nome de quem me identifica. Entregam-me Os símbolos de cada dia e devolvo o significado Comum para as palavras calendarizadas. Nada fica por dizer a seu tempo, ainda que eu escreva Demasiado rápido para não haver uma ordem preestabelecida Nos graus superlativos do silêncio. Até gritar Ninguém se capacite da minha mudez. Expusessem-me à dor E no plural não me entregaria em sacrifício! As vogais mudas merecem ser proferidas Para consolo das consoantes que arranham a língua. Quando abro aspas estendam que ainda posso ser fútil E ao ter medo de ser mal-interpretado, adiar a fuga. Na tragédia de sentir os poemas escritos a céu aberto Fedem os corpos miseráveis em que me senti vivo. As palavras que morrem com um ponto final Não pedem que se acrescente adjectivos Aos sujeitos que vivem desta lixeira! Há aqui depositados suficientes poemas meus Para julgar que não me faltarão as palavras ordinárias...