Tardiamente venera-se a forma interior,
E por mais sincero que o exterior ainda vos possa
Parecer susceptível de inocentar, não caiam na tentação
De expurgarem as feridas em que me dilacero.
Reservo-me ao direito de deixar de existir.
Se as pálpebras mantêm os olhos inacessíveis,
Por amor a esta pátria fria, é porque de frente
Não enfrentei as vezes necessárias o Sol.
Não confundo as sombras com a luz que me vela!
Ao pressentir a respiração dos objectos íntimos,
Das palavras impugnadas subtraio os significados íntimos,
Como se as conclusões óbvias fossem a soma dos medos.
Granjeiem as condecorações que não trago unidas ao peito
E se queimarem a bandeira que me escancara a alma
É porque como apátrida não terei nada a esconder
Na hora de ser vencido pela derradeira vez.
Não hesitem em queimar os livros proibidos
Descerrados aos meus pés. Invoquem a autópsia
Da minha autobiografia como se já não houvesse tempo
Para reescrever o que ficar matematicamente por demonstrar.
Não vos deixeis enganar pelo amontoado de membros
Inertes, amputados na hora do deslumbramento.
Nunca deixei de ir onde as vossas pernas me levaram!
E ao esticar o braço direito ainda penetro
No ventre cálido das vossas queridas viúvas.
Os lençóis puros de que vos desamortalhei,
As pestes insaráveis que vos inoculei,
Os beijos traídos com que vos sentenciei,
O derradeiro projéctil que vos juramentei,
Os espelhos embaciados em que vos reconheci,
São meros pormenores do enredo sobrelotado
Do livro mais pequeno da vida escrita.
O maior é obra de um catedrático analfabeto
Que não subtraiu ao dicionário as melhores palavras
Para a vida usar na convocatória do destino.
E andamos todos aqui a fazer de contas de cabeça
Enquanto bastava usar a regra de três simples
Para provar que no fim tudo bate certo.
O narrador ao receber o consentimento
Para fazer o que bem entender pela história
Da vossa existência, sem o prazer da loucura,
Sabíeis que as personagens secundárias são fundamentais
Para que o leitor não se desiluda com o herói!
Não sou o escultor que acredita na forma interior
Das suas pedras subtraídas à montanha sagrada,
Nem tampouco o pintor que subjuga o arco-íris à paleta,
Nunca o músico que compõe harmonicamente o grito!
Mais que um pregador ao irresistível abismo,
Como poeta desarmado só deserto das batalhas
Que posso travar com uma caneta permanente.
Assino em branco toda a minha culpa circunstancial:
Não salvei a vida a alguém disposto a expirar,
Nem ainda decifrei nenhuma palavra proibida.
Não fui presumivelmente o último a merecer
Este lugar-comum onde ninguém quer pertencer.
Estas raízes foram as que o meu tronco subjugou.
O veneno que se expurga das minhas chagas
Solidificou o sangue demasiado fluído.
Já devolveram o branco aos muros da liberdade
Que teimosamente não reconheciam o meu nome?
Venho em que lugar da lista? Não se deixem enganar
Que ainda não me consolidei na minha abreviatura.
Quando a minha vez chegar ao levantar a mão
Desconfiem da outra que se mantém a escrever.
Quem se perpetua na minha expectativa
Deve aguardar pacientemente que seja segunda-feira,
Para que me possa deslocar à papelaria onde compro
Toda a tinta preta, do tipo sanguíneo mais vulgar,
Para a revolução interior acontecer no papel por encardir.
António Miguel Ferreira
https://www.facebook.com/antoniomiguelferreiraescritor/
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