O protocolo, em vigor, obriga à revelação
Das fotografias na câmara escura onde me desvaneço.
No último instante não serão meus os olhos escancarados.
Depois do flash estarei pronto a servir!
Motivado a assinar a carta de demissão do cozinheiro
Suplico-lhe a última refeição decente
Para quem amanhã nada terá para comer.
Tenho a família oficial à espera para o jantar comemorativo
Dos anos que faltam para eu desandar daqui.
O prato escolhido tem o meu nome encriptado.
Um censor que contrataram,
profissional das verdades
Práticas, pede-me os títulos da minha
ignorância
E ao não entregar os conceitos em que me pratico
Não sei aconselhar em qual dos menus sou mais apetecível.
Desde que a carne esteja bem passada
Ninguém sentirá a tentação de me desejar cru.
Estou preocupado com a minha filha que não sendo vegetariana
Nunca me viu como uma natureza morta!
Na hora de pagar em redor da mesa posta
Todas as promessas que fiz pelos convivas
Os joelhos atraiçoam-me com a um peregrino.
Nunca planeei escapar daqui impunemente.
A minha mãe está implicada nos relâmpagos
E pela ira de Deus não me atrevo ao perdão.
Entrego-me às sombras onde não me escondo:
Ao vaticinador que garante a expiação
dos meus pecados
Afianço que estará comigo do outro
lado do espelho.
O tecto salitrado revela-me que as
lágrimas do céu
São da mesma matéria-prima deste
chão.
Faz eco a notícia que acabou de
estacionar
Um camião cisterna com flor de sal
para as minhas feridas.
As costas flageladas ameaçam ceder
aos ímpetos de dor.
O meu pai já telefonou para a defesa
do consumidor
A alertar para a fraca qualidade da minha
carne,
Impunemente há demasiado tempo por consumir.
Precisava só que alguém me
confirmasse as distâncias:
Prolongo a mão direita para devolver
os talheres:
Das vezes que me dei a provar
estranhei-me o sabor.
De braços cruzados evitaria o meu
superior desmembramento.
Uma matilha de cães selvagens brinca com a minha língua
Comprimida. Preferiam-me os ossos menos duros
E pontiagudos. Repórteres de bloco de notas em punho
Descrevem pormenorizadamente os meus derradeiros esgares.
A repórter da estação televisiva que
detém o exclusivo
Em directo, solicita que eu dê mais
realce ao branco dos olhos.
O meu irmão continua a comer como se o
meu apetite
Nunca lhe tivesse dado voltas ao
estômago.
Acabou de chegar o cirurgião post-morten que me cozerá
O estômago e certificará o cadáver. Não
resta muito
Por comer! As pernas seguramente
serão decepadas cerces
Para que o poema não caminhe fora
desta mesa.
À porta do restaurante a marcha de
protesto
Já foi abafada por canhões de
hipoclorito de sódio a 100%.
Se na hora da esterilidade ainda restar
de mim memória
É porque este jantar não foi em vão.
E a minha mulher preocupada de não
sentir-me
Um travo a coentros! Também a escolha
do vinho
Não foi a indicada. Sou mais
apetitoso engolido em seco!
Todos se dão por satisfeitos com a
barriga cheia.
No tempo que esgravata a terra húmida
Ficariam enterradas as raízes que me
prendiam…
Mas agora também os tubérculos são
apetecíveis!
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