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Centenário do nascimento de Sophia de Mello Breyner Andresen



Se Fernando Pessoa simboliza a nossa irracionalidade, quando à beira do precipício ensaiamos a morte e na hora de dar o derradeiro passo recuamos com a desconfiança de ainda não se ter dado todas as oportunidades que a vida merece, se ele é poeta da nossa portugalidade moderna, em que estamos sempre um passo atrás dos sonhos, se ele é o nosso avesso que teima em não se identificar com a nossa superficialidade, já Sophia de Mello Breyner Andresen, de quem hoje se celebra o centésimo aniversário natalício, simboliza o oposto. Se Pessoa simboliza o medo de ser feliz Sophia representa a tentação de ir mais longe, o apelo a não baixar os braços sem dar luta. Mas não se pense que é uma revolucionária, uma Maria da Fonte pronta a pegar em qualquer ferramenta que possa vencer o inimigo. Não! Embora esteja bem armada com papel e caneta. E a História está replecta de exemplos de canetas letais… Ela é uma pacifista que acredita que é preciso explicar aos conceitos o significado dos adjectivos, não fechando a porta ao diálogo.
Não quis o destino que estes dois vultos da literatura portuguesa travassem conhecimento físico. Quando Sophia se fez mulher Pessoa libertava o último suspiro! Se o tempo de um fosse o do outro não sei se se iriam odiar com todas as palavras ou se se iriam completar. São poetas antagónicos e, contudo, resumem a essência do mais comum dos portugueses: o ser utópico que desperdiça energias ao sonhar! Se Pessoa é o sonhador já Sophia é o engenho! Cada português tem um e outro dentro de si, não sabemos a qual dos dois dar ouvidos. Quando nos sentimos hesitantes sobre o caminho a tomar, se vamos para o litoral se para o interior, se olhamos para o buraco aprofundado aos nossos pés ou se embarcamos no balão de ar quente pronto a levantar voo, Pessoa e Sophia fazem do nosso interior uma arena. Gladiam-se na perspectiva do Norte. Mas há rumo certo? Eu próprio não sei a qual dos dois dou mais vezes razão. Se sigo um fico com o remorso de não ter escutado o outro. Eles são a nossa consciência e simultaneamente as faces da moeda que decide a nossa sorte. Se nos lamentamos da nossa falta de sorte ao longo da vida é porque escolhemos sempre em consciência a face errada. Só aqueles que possuem moedas com duas faces iguais é que acertam no caminho. E o quem está representado em cada face da moeda do nosso destino? Pessoa e Sophia, lado a lado.
Se Pessoa é o nosso carrasco, Sophia será a nossa musa? Não e Sim! Ela é mãe extremosa que não desafia o filho-poeta a lutar por uma liberdade executada atrás das grades, mas também é a inspiração com sabor a mar e com perfume a fertilidade.
Quando os poetas sabem tirar dos desperdícios da vida as migalhas para saciarem o apetite das pequenas coisas, quando já não restam forças para esperar pela próxima colheita, eles lançam novas sementes para uma nova germinação, o que implica o renascimento da alma reprovada pelo corpo. O nosso mal foi sempre ter demasiada alma para tão pouco corpo! Se fôssemos apenas consciência, espírito e rumor não saberíamos dizer deste existir que para além da matéria-prima que nos corporaliza somos um fantasma em processo de amadurecimento.
Nos nossos cadernos pretos tudo seria mais claro como se não fosse obrigatório mudar de página após cada batalha. Vencedor ou vencido pouco importaria! Se bastasse rasgar os cadernos, para as memórias mais negras desaparecerem, não sentiríamos tanto apreço pelo frio. Depois dos cadernos rasgados as fogueiras concordariam com o processo de desmemorização, e já sem frio, na manhã seguinte, correríamos como loucos para comprar novos cadernos. Talvez quando chegasse a nossa vez na fila o stock tivesse esgotado, e nesse dia talvez ponderássemos nunca mais escrever uma linha… Mas na manhã seguinte lá estaríamos nós novamente, acordados ainda mais cedo, e lá conseguiríamos o caderno a que ganhámos direito. Os deuses fantásticos da nossa loucura divertem-se a apreciar o nosso esforço quotidiano: primeiro a aprender o caminho a fazer e depois a apagar o trilho que deixámos para não nos esquecermos de onde viemos. É o jogo do toque e foge com o destino! E enquanto estamos envolvidos neste jogo o tempo passa e quando a madrugada de todas as madrugadas chega já não basta adorar o sol para comover os novos deuses da nossa nocturnalidade.
Sophia, é para si, aí no céu dos Poetas, que agora me dirijo! Se se cruzar com o Pessoa diga-lhe que preciso de lhe dar uma palavrinha sobre o destino que os astros me traçaram. O meu mapa astral deixa-me confuso!
Hoje, dia em que se comemora o seu nascimento, presto-lhe a minha homenagem, em forma de poema sem nome:
Se dar nome às coisas é perceber
Que entre o espelho e o reflexo
Há um espaço morto onde a multidão
Se aglutina por um lugar à mesa,
Então os quadros que habitam a casa
Deserta explicam que os ciclos só se completam
Quando deixa de existir alguém
Para rasgar as fotografias maduras.
Se os poemas mais felizes não sentiram
O apelo das lágrimas porquê considerar
Que ao ficar-se à espera da morte
Apressa-se a necessidade do esgotar da tinta ?
Sem medo os generais dão à costa
E os náufragos falam de bailarinas
Que do fundo do mar apelam ao regresso
Evolutivo para ensaiarmos a dança da vida.
Se os únicos animais com que podemos contar
Estão sobrealimentados nos jardins zoológicos,
Como argumentar que somos suficientemente
Selvagens para regressar à natureza
Que não nos questiona pelas cicatrizes?
Como as feridas revelam a carne-viva
Também se capitulam livros demasiado pesados
Para serem empunhados de pé!
Rasguem-se os cadernos mais negros
E forneça-se uma folha inocente a cada desertor!
Por fim, reúnam-se todas as memórias num verso
Solto sem necessidade de arrependimento.
Sentada à esquerda do povo
Nem com este frio revele temor!
Ao dizer pão já ouviu falar do fermento.
De costas voltadas pratique a cegueira
E vá longe demais ao daqui não arredar pé!
Pratique os êxtases que a vida reserva
Para cada um de nós colectivamente.
Como efígie não possui agora o dever
De estar à altura das estátuas decapitadas.
Como corpo sagrado na tentação do pecado
Do amor, com certeza, que saberá que o tempo
Foi decomposto em demasiados lapsos
Para se perceber o mapa rabiscado
À entrada da máquina dos regressos
Premeditados. Navegar sem fado é ainda convencer
As estrelas a traçarem a rota de colisão.
Há tantos mundos interiores à espera
Por serem desvendados nas profundezas da alma…
Se encontrar escancarada uma janela
Corra para ver que a poesia está na rua!
Como deus e o diabo andam de mãos-dadas
Ensine-os a dançar! Os portugueses
Estão cansados do destino traçado,
E até já aprenderam a escrever direito
Por linhas irremediavelmente tortas.

António Miguel Ferreira, 06-11-2019

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