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A CRIANÇA PELA MINHA MÃO

 


A criança pela minha mão não sabe que um dia

Irá sentir saudade dos seus brinquedos. Já se apercebeu

Que está a crescer, mas sente-se confiante. Afinal

Prometi-lhe de que sempre que tropeçar terá

A minha mão para a ajudar a levantar. Julga

Que não precisará de outras ferramentas… As lágrimas

Não contidas, para tão pouca vontade de chorar,

São apenas pormenores de uma vida que passa a correr.

Com um sorriso nos lábios a minha criança sente-se apta

Para os desafios que a vida lhe propõe.

 

E quando ela reparar que já não dispõe

Dos brinquedos que hoje tem ao seu alcance?

Quem lhe vai dizer que já não pode brincar? Quem

A vai reprimir pelo cabelo cortado à boneca?

Quem vai ler-lhe a história sem final?  Ela não vai conseguir

Adormecer e eu ainda sou a única pessoa

Que ela conhece que consegue mudar o que está escrito.

 

Porque ninguém diz às crianças a verdadeira

Razão para não destruírem os seus brinquedos?

Digam-lhes os professores, na escola, de que quando forem

Adultas vão sentir a falta dos brinquedos da sua meninice.

Digam-lhes os próprios adultos que choram pelos seus

Brinquedos arruinados no limiar da curiosidade.

Mas talvez para as crianças perceberem isso

Primeiro tenham de crescer… Doem-me os brinquedos

Estragados. Todos os dias cruzo-me com alguém

Que se lamenta por ter destruído o que mais gostava.

 

Já não basta brincar ao faz de conta. Na idade dos porquês

Ninguém me satisfez as dúvidas. Eu não estava preparado

Para crescer e com a pressa de envelhecer

Esqueci-me de ter saudades do futuro.

Queria de volta a esperança dos dias de nevoeiro, o sorriso

Do estranho, a loucura das horas mortas, a timidez do candelabro

Arrefecido, a inocência da derradeira palavra e a vontade de ir

Mais além do que a superfície do espelho. A coragem de olhar

Para trás advém de já ter dado muitas formas ao destino

Mas ainda é nesta ausência que corpo e alma se confundem

E nenhuma das duas partes se quer conformar com o todo.

 

Quando regresso a casa da minha mãe penso nos meus

Brinquedos. Onde estão eles? Quando todos estivessem a dormir

Poderia ir a um armário buscar os brinquedos que fiz

Por merecer na infância… Colocaria pilhas novas no meu carro

e faria uma corrida pela pista do corredor. Ao chocar com a porta

Da cozinha talvez acordasse os super-heróis e, com eles ao meu serviço,

Sem nunca ter saído da casa, salvaria o mundo das mãos das forças do mal.

 

Mas em vez de brinquedos o armário está cheio de roupas

Que não me servem. Se a minha mãe tivesse preferido guardar

Os brinquedos em vez da roupa, eu ainda seria a criança que não me dei

Conta de ter sido. Não me acusem de que, tal como poupar as roupas

Andei despido, para não poder voltar a brincar destrui os brinquedos.

 

Claro que poderia comprar outros. Muito mais sofisticados

Do que aqueles que possuí. Quantos de nós nas lojas não escolhem

Os brinquedos para os filhos a pensarem em si? Mas o que os outros

Iriam pensar quando nos vissem a brincar? Despertaríamos a curiosidade

E muitos aproximar-se-iam… Será que seriam os mesmos amigos

De infância, aqueles nos vinham chamar no fim da escola

Para brincar? Quando os políticos se cansarem de andar

A brincar com a vida dos outros talvez fomentem no código

Do trabalho uma pausa para os trabalhadores brincar!

Quinze minutos bastarão para a produtividade aumentar!

 

Para aliviar as dores hoje os meus brinquedos são as palavras.

Não todas! Muitas das que me resistem não nasceram

Para crianças como eu que premeditam o silêncio.

Ainda poderei fabricar brinquedos com a matéria-prima

Que sobrar do meu caixão, mas para fingir-me de morto

Não posso deixar de sentir-me vivo.

 

António Miguel Ferreira

01-06-2021



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