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Nos cem anos do Partido Comunista Português.

 

Como não tenho uma visão simples das coisas essenciais

A minha descrença nasce do cooperativismo das aves migratórias.

Não se precisaria de tanto céu azul para esta necessidade

De rezar todos os dias para chover dia sim dia não. O vento que passa

Despercebido pelos galos empoleirados nos celeiros não traz

Boas-novas. Os necrófagos só se lamentam pelas leis do mercado

Ditarem que de cada vez que o trabalho liberta um escavador

Este sabe a que profundidade deixou de ser semente.

 

O teor das lágrimas mais cristalinas leva a que quem se recusa

A parar de chorar possa temperar o coração oprimido com as utopias

Prescritas para enganarem a fome dos homens exauridos. Para eu ser

Mais científico teria de concordar que cada um dos tijolos

Que constituem a grande pirâmide já foi uma criança no regaço

De uma mãe com uma foice na mão. As linhas de produção só fabricam

Poemas de liberdade quando na engrenagem fica preso um homem

Cansado de dar corda ao relógio que mede a sobrevivência das suas crias.

 

Nestes dias marcados para o fim do mundo arrancam-se pela raiz

As árvores que deixam de dar fruto. Os que usam da palavra

Para calar os inconformados remetem-se ao silêncio quando ficam

Entre a espada e a parede. De todas as verdades oficializadas pela tortura

Nenhuma aludiu a que, depois de dobrado o cunhal, o caminho fosse

Sempre em linha recta. Quando o martelo caía por terra, para o grito

Oprimido não bastava uma fornalha para moldar a forma do estômago.

 

 

Hoje é dia de festa! Venham todos! Das cidades fantasma, dos campos

Áridos, das fábricas paradas, das cantinas da regurgitação, das antecâmeras

Do medo… Esta manta de retalhos burguesa, sobre os pés, precisa de todos

Os farrapos do proletariado para se sentir completa! Não apresenteis

As vossas virtudes que todos sabemos que quem se habituou a escrever

Revolução, nos muros caiados do avesso, não precisa da abundância

Dos outros para afiançar o seu próprio apetite. Sentai-vos à mesa!

Cumpra-se a obrigação de repartir o prato vazio com quem se reconhecer

Sentado em frente… Nesta propriedade privada a fome é comum a todos

Os camaradas. Quando vos sentirdes extasiados, ainda não vos levanteis!

Enquanto não vos tiverdes comido uns aos outros prevalecerá a esperança

Na revolução. Porque não me sento? Quem vos aqui reuniu, sem ninguém

Para vos servir, não sentiu a necessidade em contratar um cozinheiro.

 

 António Miguel Ferreira

06 Março 2021

 

 


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