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OS MEUS SENTIMENTOS


Quem me conhece mais profundamente sabe que se contenho as palavras ou é para não ser mal interpretado ou, porque tudo o que disser não irá corrigir a ordem natural das coisas. Nesta vida, em que o mal está feito, as palavras não se podem limitar a ser remendos.
Nunca fui daqueles que corriam a pegar no telefone para “dar os sentimentos” ao dono da voz entaramelada que me atendesse do outro lado. Tenho grande dificuldade em dizer palavras difíceis. E “os meus sentimentos” são das palavras mais difíceis que me podem escutar. Quase tão difíceis como dizer a alguém, que não está preparado, que gosto dela. As minhas palavras podem fazer milagres no coração de alguém (decerto que já o fizeram!), podem levantar a cabeça a alguém que perdeu a esperança, podem até fazer voar alguém que ainda está na fase da instrução, mas não podem suavizar o vazio de uma morte.

Nestes últimos dias, meses, tenho contrariado a minha indisponibilidade para com as palavras que me doem verter.
Todos os dias alguém, em meu redor, perde avós, pais, irmãos, amigos, colegas de trabalho… E, como não sou bom a limpar lágrimas, em vez de oferecer um lenço, sigo o instinto de manifestar as minhas condolências. Estou a ficar cansado de dar os sentimentos! Estou cansado de ver as pessoas ao meu redor a sentirem-se vazias, estou cansado de ver o tecto do meu mundo a desabar sobre as casas que compõem a grande aldeia da minha vida. Estou farto… E, contudo, o que posso eu fazer? Limito-me a dar os meus sentimentos… Quase todos os dias alguém recebe os meus sentimentos… Recuso-me a ser uma fábrica de condolências!
Não me basta dizer “os meus sentimentos” completado por um abraço ou um beijinho e, virando costas, encolher os ombros. Faltam-me as palavras ideais! Não me bastam as possíveis… Apetece-me pegar no dicionário e incendiá-lo porque se ele não tem as palavras de que preciso nestes momentos então é um inútil compêndio que só serve para expressar as coisas à superfície. E este inverno tem sido muito frio para não se queimarem os livros que se revelam inúteis. Preciso de outras palavras! Preciso de novas palavras para cada pessoa a quem entrego os meus sentimentos.
Todos queremos acreditar que o momento da morte é apenas uma porta que se abre de uma outra casa. Mas como aceitar que esta fique vazia? Sei que as minhas palavras, quaisquer que elas sejam, não vão tornar a casa menos vazia, mas até o silêncio precisa das palavras certas para o nosso diálogo com a morte deixar de ser o monólogo da vida.


Tudo passará! Porque esta epidemia haverá de passar! Claro que continuará a morrer gente, avós, pais, amigos, conhecidos, mas aí já espero ter tempo para escolher as melhores palavras para cada um dos habitantes desta casa.
Daqui a dias, a meses, a anos, reencontrarei algumas destas pessoas, a quem hoje dou “os meus sentimentos”, e vou estranhar o silêncio daquela pessoa. Não me vou aperceber que esse silêncio é motivado pela perda destes dias. Usarei palavras inapropriadas para penetrar no seu silêncio e ficarei a pensar que se essa pessoa está de costas voltadas com a vida é porque não soube abrir ou fechar as portas certas. Nesse momento talvez eu já tenha as palavras certas, mas aquele já não será o momento certo. Faltaram palavras para encerrar hermeticamente o caixão… A palavra certa para a fechadura certa…
Há pessoas que saíram da minha vida há décadas e que todos os dias sinto a sua falta nas divisões que cada uma preenchia na casa do meu coração. Isso só acontece porque recebi as palavras certas no momento da sua partida. Não basta sentir o espírito, ver a árvore a agitar-se à nossa passagem ou estender o braço ao passarinho que nos vem comer à mão. Não basta aceitar os sinais e acreditar que as portas entreabertas prolongam a nossa ideia de casa. Não basta dizer à saudade que o destino é mais forte que a razão! Não basta… São precisas palavras de carne e osso, para memória futura!
A quem eu hoje dou “os meus sentimentos”, pelo facebook, pelo telefone, ou olhos nos olhos, entenda que as minhas palavras não são nada! Quer sejam mensagens mais ou menos elaboradas todas elas são compostas por palavras que eu preferia amordaçar, porque não encontrei as palavras certas.
A mim, não me venham dar os vossos os sentimentos! Não! Não perdi ninguém! E não estou preparado para perder! Nem estou preparado para os vossos sentimentos curtos.
Todos temos palavras guardadas para momentos especiais… Quantas pessoas esperam que nós lhe digamos que gostamos delas? Não podemos ficar eternamente à espera do momento ideal para libertarmos essas palavras! A morte não é esse momento! Não tenhamos medo de dizer a alguém que vamos sentir a falta dessa pessoa quando ela já não estiver junto de nós. Façamos de cada dia com os nossos familiares, com os nossos amigos, com os nossos colegas de trabalho, não uma oportunidade para nos despedirmos deles, mas uma razão para que quando já não estivermos juntos, as palavras de condolências recebidas que falam sobre o vazio que se instaurou fazerem pleno sentido.
Peço que se um dia forem dar os vossos sentimentos à minha mulher, à minha filha, a quem sentir de um modo implacável a minha partida, se não encontrarem as melhores palavras, prefiram ficar em silêncio. Quem choca com a morte de frente compreende!

António Miguel Ferreira
27 janeiro 2021

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