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A ESCOLA DA MINHA INFÂNCIA

 

Ao longo da vida passamos por muitas escolas. Mas nenhuma nos fornece mais ferramentas do que a primeira. Mas quando já possuímos as ferramentas primárias para podermos responder às perguntas do quotidiano, não nos damos por contentes e prosseguimos na busca desenfreada de conhecimento. Matriculamo-nos em cursos que apenas realçam a nossa ignorância e esquecemo-nos de resolver as coisas essenciais de que nos queixamos, como a falta de tempo e que para estabelecer um diálogo são precisos pelo menos dois interlocutores... A felicidade não vem com as perguntas que conseguimos satisfazer nos monólogos a que nos sujeitamos! Depois de conseguimos as respostas que perseguimos nasce sempre a necessidade de acrescentarmos novas perguntas. E, de compromisso em compromisso, não paramos para descansar de nós mesmos. Estamos todos fartos de nos aturarmos a nós próprios e pensamos que com novas respostas esgotamos a ambição por novas perguntas. Nada mais errado! Demasiado saber nunca fez bem a ninguém! Muitos dos homens mais sábios desta humanidade deixaram-se apoderar pela loucura. E todos nós, que estivemos já estivemos à sua beira, sabemos que isso se deveu a conhecimento em excesso. Pare-se para descansar! Tiremos as máscaras interiores, respiremos fundo e deixemos entrar o ar até os pulmões perceberem que não há muito para aprender além do que a natureza de cada um intui. Que os nossos sentidos decidam o que é melhor! Se o que for melhor para cada um de nós individualmente não for o melhor para todos, talvez os nossos pulmões não mereçam o ar que se inspira...  A sabedoria não se esgota e, contudo, para descrever a felicidade bastam poucas palavras.

Se temos medo de ser julgados como analfabetos experimente-se pregar um prego numa parede com um livro a servir de martelo. O livro, mesmo que tenha capa dura, com título debruado a ouro, sofrerá mais danos do que a parede! A nossa cabeça não pode ser o martelo para quando os livros se deparam com paredes. Todos reconhecemos que muitas das pessoas mais inteligentes com que nos cruzámos na vida nunca foram além de umas letras metidas à força na cachimónia. Nesse tempo as prioridades eram outras, mas nem por isso deixou de respirar fundo sempre que sentiu a necessidade de ir mais além do que estava pressagiado. Não é de agora que se está proibido de respirar a plenos pulmões! Isso já vem de detrás, com o dever que cada individuo que entra numa escola, acarreta de se tornar o melhor aluno. Mas alunos demasiado aplicados, educados para terem o mundo a seus pés, geralmente não são bons respiradores. E depois crescem a roubar o ar que os outros, os menos aplicados, precisam para sobreviverem. De quem é a culpa? Talvez não seja descabido recuar aos tempos da primeira escola, em que tudo começa.  

Sempre que passo à frente da escola primária que frequentei sinto a tentação de entrar. Transpor os portões e regressar àquele tempo, como se ainda pudesse comprometer o futuro que tinha pela frente. Seria mais fácil resistir se a escola estivesse em ruínas e aí ganharia consciência que já não há nada a fazer pela criança que fui e que recuso a aceitar que já deixei de ser. Se não ultrapasso os portões é porque sinto medo! A escola está cheia de fantasmas! Tenho medo de reencontrar os meus professores, os meus colegas. Alguns deles já são fantasmas na vida real… Não sei como iria reagir na sua presença. Talvez pedisse desculpa à professora por estar desatento, talvez suplicasse aos meus colegas para me deixarem jogar com eles à bola no recreio, talvez não me escondesse tão bem a jogar às escondidas com o pretexto de ser encontrado pela rapariga que nunca soube que foi o primeiro amor da minha vida. Mas garanto que continuaria a não denunciar à professora, que me encontrou a soluçar, o colega que me deu o primeiro murro que me atingiu na memória. Os meus professores preferidos sempre foram aqueles que aplicavam o mesmo castigo tanto ao queixoso como ao criminoso.

Quando saímos de uma escola, muitas vezes para enveredarmos noutra, para trás deveriam apenas ficar ruínas. E por cada novo aluno, por cada nova turma deveria ser erguida uma nova escola. Vão dizer eu isso não é praticável em termos económicos…. Construam escolas recicláveis! Assim, como eu, quando se passa à frente da escola, onde se aprendeu tudo o que era sensato aprender, não se teria a sensação de que tudo o que veio depois foi em vão. E que de tudo o que ainda haveria a aprender faltou aquilo que era mais importante. E o que é isso que ficou por aprender? Não sei ainda resposta. Nem sei onde isso se ensina. Quando o souber vou de imediato matricular-me nessa escola. Para que serve tanto conhecimento? Para fazermos novas perguntas? Com tantas respostas plausíveis deveríamos escolher melhor as nossas perguntas.

Talvez um dia eu ganhe coragem e entre na minha primeira escola. Sinto-me capacitado para apontar o lugar exacto onde cada um dos meus colegas se costumava sentar. Eu ficava sempre à frente, por contingências alfabéticas e porque já a minha mãe dizia que à frente se aprendia melhor. Não sei se será bem assim porque muitas das pessoas a quem admito larga inteligência sempre tiveram lugares reservados no fundo das salas de aula onde eu fazia figura de corpo presente. Gostava de poder voltar a sentar-me no meu lugar predestinado e quando o fantasma da professora me chamasse para ir ao quadro, eu pudesse mostrar aos meus colegas, mais uma vez, que se a ignorância faz rir é porque a sabedoria chora sempre por mais conhecimento.

Deixei tantos fantasmas nessa escola. Muitos nunca saíram dessa sala de aula. A alguns dos que conseguiram escapar perdi-lhes o rasto no labirinto da vida. Andam por aí, sem perceberem que são fantasmas! Noutros, com que me cruzo diariamente, ainda reconheço os traços com que os perpetuei na minha memória. Sempre que me cruzo com um dá-me vontade de lhe pegar pela mão e trazê-lo para a frente de um espelho para lhe mostrar de qual de nós os dois é menos real. Tenho sempre conseguido virar costas, resistindo à vontade de entrar e permanecer. Já passaram anos suficientes para eu não sentir saudades, mas não hesitaria em dar um pedaço do futuro para voltar a esse passado, sendo que o futuro me parece mais próximo que essa infância.

Hoje iniciou-se mais um ano lectivo. A minha filha regressou à sua primeira escola. Este será um ano escolar estranho, como é estranha a vida por estes dias. E quase todas as culpas vão para as máscaras, porque sem elas ainda podíamos fingir que tudo corre dentro da normalidade. As máscaras não só nos amordaçam como não nos permitem respirar o quanto devíamos. Cada máscara vem acompanhada por uma bolha de ar, e se vamos além dessa bolha somos logo mal interpretados, como se estivéssemos a usurpar o ar que não nos pertence. As máscaras tornaram-se num disfarce que nos atribui a condição de suspeitos para os problemas respiratórios dos outros. Como se sem máscaras deixássemos de ter direito ao conhecimento…

Esta é a única escola, patrocinada pelo Estado, que a minha filha ainda conhece, mas em apenas meio ano lectivo já lhe ensinou mais do que aprenderá nos restantes anos da sua vida. Sabe ler e escrever, ao seu ritmo, e isso bastará para compreender tudo o que se seguirá, pela vida fora. Tudo o que vai aprender quando sair desta escola, para enveredar outra, são apontamentos rabiscados por professores que tem como missão demonstrar que existe vida fora de uma sala de aula. Mas será que existe? Quando uma criança está dentro de uma sala de aulas o mundo cabe todo lá dentro!

Ao reencontrar na entrada da escola os fantasmas dos colegas que se separou abruptamente há seis meses reparei que ela os olhava de uma forma estranha. Era como se fosse a primeira vez. Além de um sorriso tímido ficou quieta, em silêncio. O tempo coze as bocas de quem não sabe como reagir aos reencontros. Estamos presos numa longa-metragem de que apenas somos figurantes. Lamento pelos protagonistas que se julgam na posse das ferramentas para mudarem o que está estabelecido para ser ensinado às gerações vindouras. Não apenas querem dizer que lutaram até à vitória final, como querem garantir que o caminho era só esse. Eu não sei se existe outro caminho… Aprendi que quando se tem um só caminho pela frente não se pode escolher.

Quem olha para trás perde tempo, mas também recolhe conhecimentos para que os seus próximos passos sejam mais firmes. Cabe aos professores demonstrar que sem máscara respira-se melhor, e que para o caminho feito não era preciso usar máscaras! E se as nossas crianças têm de andar constantemente a desinfectar as mãos que seja para as darem umas às outras, depois de se verem livre das máscaras.

Daqui a uns anos, depois de ela já ter passado por outras escolas, ao passar à frente desta, ao espreitar os fantasmas dos seus colegas a brincarem no recreio, vai ter vontade de entrar. Vai então perceber que ela própria é um fantasma. Somos todos fantasmas! Talvez ela sinta que as escolas seguintes pouco lhe ensinaram, comparativamente com esta. A primeira escola é aquela que mais nos tem para ensinar! As restantes apenas acrescentam apêndices ao livro da vida...

 

António Miguel Ferreira

17/09/2020



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