Outrora aqui havia um velho
espelho,
Afeito à contemplação do
teu rosto imenso.
Reconstrui-o na mesma
estação quente
Em que sem predestinação o
estilhaçaste.
Subtrai-o hoje ao fundo da
gaveta trancada...
Já perdeste o tempo em que
lhe pertencias!
O branco dos teus olhos
nunca foi tão negro!
Enquanto figurante na
narrativa da vida
Podes deixar de conter as
lágrimas...
Sei que tens medo de não te
legitimares…
Reencontra o espelho mágico
herdado da tua mãe...
Superfícies como esta nunca
traem a beleza
Das progenitoras partidas
para parte incerta.
Liberta a dor e ultrapassa
a superficialidade.
Dentro deste espelho serás
mais profunda!
As linhas por onde quebrou
são as tuas rugas
E quanto a isso já nada
poderás fazer…
Como não preparaste o teu
rosto em configuração,
Na primeira vez que te
maquilhaste,
Também repudiarás agora
toda a tua nudez.
Tens aqui uma bacia com
água corrente,
À temperatura natural do
teu corpo arrefecido.
Há quanto tempo as maças do
teu rosto
Não conhecem uma carícia
paternal?
Impõe-se que te esbofeteie
em sinal do respeito
Que perdeste quando eu
ainda te beijava na testa.
O Abecedário do teu rosto
não finda na letra T!
Se preferes redefinir a
palavra saudade
Apresento-te os conceitos
aliados da pureza…
Minha filha, as personagens
que amadureceram
No teu rosto são meras
cicatrizes insaciáveis por carne-viva.
Primeiro, sem piedade,
rasga-se pele!
As mãos só se deterão
quando experimentarem
A oleosidade com que
domesticavas a adolescência.
Revela a base que omite os
traços primários.
Os iluminadores iludiram-te
ao desvanecerem
Os traços comuns em que te
realçavas.
Também o teu sorriso se
extinguiu no efeito-mate
Que obscureceu a
interioridade em combustão.
Nos jogos de sombras no teu
rosto
Esquadrinham-se vértices
sem ponto-de-vista.
Com o tempo a maquilhagem
penetrou internamente
E tornou dura, quase
inerte, a epiderme.
Depois de reabertos todos
os poros
A pele translúcida suplica
por uma ténue massagem.
As unhas ainda conhecem as
pontas dos dedos?
As tuas olheiras não mentem
sobre os dias dormidos…
Sem expressão, a menina dos
olhos perdeu a infância.
Liberta agora os olhos sem
complacência!
Não precisas de pestanejar
tantas vezes
Para pertenceres à
realidade com que te cruzas!
O teu pai abria os olhos
sempre debaixo de água!
De olhos fechados não teria
descoberto
A tua mãe à profundidade
das sereias…
Depois de descerradas as
pálpebras e não deixes
Por abrir as janelas da
alma desperdiçada.
Junto ao espelho estavam os
primeiros óculos,
Com que percebeste as
distâncias concretas!
Coloca-os para este quarto
te ser familiar…
Reparo que não tinhas esse
sinal no lábio inferior!...
Quantas palavras ele te
esmordaçou?...
Eis finalmente a tua cara
de menina!
Talvez nunca tenhas daqui
partido...
Talvez apenas tenha sido o
espelho a cair…
Agora que se apresenta
consertado,
Já podemos tomar juntos o
pequeno-almoço!
Há quanto tempo não
acordavas esfomeada?
Amanhã será o dia de
lavares o coração!
Se vai demorar muito tempo?
Por ainda olhares para trás
Pode vir a demorar toda a
vida…
A maquilhagem do coração
Não sai simplesmente com
água morna…
E sabes que o teu coração
sempre reagiu
Muito mal a banhos de água
fria…
António Miguel Ferreira

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