Aos
doutores analfabetos,
Com a crescente desvalorização dos vocábulos mais simples,
Que não significam mais do que se pretende que traduzam,
Prescreveram-me a aquisição de uma nova geração de palavras.
Guardo em quarentena todas as que até aqui usei,
Mas já fui avisado que a próxima vez que me socorrer
De cada uma delas, para colmatar a falta de uma mais
apropriada,
Deverei cumprir rigorosamente o protocolo do silêncio.
Se deixo de perceber as palavras que convoco
Como posso ser percebido pelo que deixo escrito?
O relatório do grafologista implicou-me!
Sou o único culpado pela morte das palavras mais íntimas!
E será curta a esperança de vida das novas
Se eu teimar em preferir os substantivos aos adjectivos.
Como não sei as formas dos objectos primitivos,
Nem as cores primárias da minha escuridão,
Sou o traidor das palavras bárbaras.
Nem um exército de pontuação justificaria
A minha coragem para questionar a ordem natural
Das coisas. Prefiro as consoantes enquanto as vogais
Tremem de frio! Os advérbios de modo não me concedem
Tempo nem lugar, e uma breve comparação da minha escrita
Com a de outros escravos não deixa margem para dúvidas:
Escrevo a liberdade por amor às grades,
Em que me reconheço prisioneiro do discurso directo.
Talvez eu acate alguns dos conselhos impostos:
Abster-me de escrever palavras que remetam para símbolos…
Os meus censores aplaudiriam o meu descuido visual,
Enquanto os meus editores prefeririam que consumisse
Mais plástico, de preferência do reciclável.
Mas a força com que usufruo das palavras femininas
Não pode significar mais do que masculinidade!
Se não ponho pontos nos is talvez esteja com pressa
Para começar outra folha em branco.
As palavras arrastam-se, mas não alcançam o grito.
O espaçamento entre o sujeito e o verbo
Permite que a tinta seque segurando as arcadas das letras.
Para aceder ao chamamento da borracha
Bastava pedir perdão, mas eu não sou inocente!
Vou consumir todas as palavras a que tenho direito….
E mesmo quando a verdade esbarrar na mentira,
Em residências de escrita criativa,
Ainda terei os termos para a primeira frase
Como se tudo começasse por “era uma vez”.
As ondas de choque remeter-me-ão para um caderno
Caligráfico e reaprenderei o meu nome comum.
Já não sustento a ansiedade com que me defino…
Definho no papel que me desaprende…
O sangue que jorra da folha não compreende
A força selvagem que emprego à caneta.
Se eu fosse canhoto teria algo a esconder,
Mas não estou inseguro das personagens que me coabitam.
Os números naturais, por ordem crescente,
Também anseiam pelo grau zero da escrita!
Se vivo recluso das minhas letras
Bastava aumentar o tamanho dos sonhos,
Impondo reflexos incondicionados ao punho direito.
Talvez aumentando uns grauzitos a temperatura deste refúgio
A minha escrita fosse mais quente e tentadora.
Como cada tinta tem o seu tempo de cozedura
Não sei se devo humedecer os dedos no virar da página.
No último livro em que fiz de narrador
Quase que ficava com uma personagem colada aos dedos.
O meu médico diz que esta cicatriz é para sempre!
Se, por fim, a minha assinatura revela falta de confiança
Talvez este não seja o tempo de preferir escrever a vermelho…
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