Ao deixar hoje a minha pequenita
na escolinha senti um amargo de boca. Não digo que sinto a consciência pesada,
mas talvez o remorso por hoje não passar o dia inteiro ao seu lado. A vida é
uma correria apressada, para, no fim, ao se fazer as contas, ao se traçar o
balanço, se chegar à irreprimível conclusão que não foi quando corrermos mais
depressa, por vencermos as corridas mais longas, que alcançámos as maiores
vitórias. Os mais valiosos troféus da nossa vida estão junto de nós. E
chamam-se pai, mãe, mulher, filhos… família! Sei que a minha filha me perdoará
por hoje não ter escolhido a pista certa para correr, mas também sei que
devemos cumprir a maratona da vida a um ritmo moderado, porque se queremos
chegar ao fim e saborearmos conscientemente a vitória a que tivermos direito,
teremos ainda de ter fôlego para agradecer à vida tudo o que de bom ela nos tem
dado. A minha filha faz esta maratona valer a pena, e não preciso de acelerar
para ser o primeiro a cruzar a meta. Todos os pais, os melhores do mundo, ao
cruzarem as metas de cada dia, dedicam no mais alto lugar do pódio a vitória
aos seus filhos. As minhas vitórias de cada dia, desde as mais ténues às mais
significantes, são por ti, Lara.
Nestes quase seis anos em que sou
pai percebi que a vida ganha outro sentido quando temos alguém para quem somos
super-heróis, alguém que deposita em nós toda a sua fé, o Peter Pan que lhes dá
a mão e lhes mostra que este mundo merece ser vivido numa outra dimensão, e que
este não é um mundo real! Para lá do espelho coexiste um outro mundo que
apetece e merece ser vivido. O meu coração, por vezes trémulo, ao sentir o
pequenino coração da minha filha, a bater junto dele, ganha um novo alento. O mais
pequenino – apenas fisiologicamente - funciona como um pacemaker para o grande.
Bastam uns singelos momentos junto da minha filha para recuperar a energia
interior, que o dia a dia corrompe. Pusessem-me num desses momentos num ringue
com o McTeear e eu despedaçá-lo-ia num só golpe, colocassem-me em campo com o Ronaldo,
com uma bola entre nós, e eu deixá-lo-ia de olhos trocados com uma finta.
Mandassem-me saltar de um prédio de cinquenta andares e eu aprenderia a voar.
Todos nós temos os melhores filhos do mundo, e eles os pais mais fortes do
universo.
Mas talvez sejamos apenas animais
que visam, como todos os outros, a perpetuação da espécie. Com o que chamamos
de amor, mas que não é outra coisa que instinto, protegemos as nossas crias,
com a garantia que depois da nossa chama se extinguir, os nossos filhos continuam
a brilhar por nós. Mas não consigo abonar que nesta sombria evolução biológica
a espécie humana levou a melhor, perante as restantes. Se olharmos para a
natureza constatamos que um sem-número de espécies cuida tão bem, ou ainda
melhor do que nós, das suas crias. Mas também há aquelas espécies que abandonam
os filhos, que fazem uma escolha seletiva, que os sacrificam, que os
menosprezam, e isso na nossa própria espécie também não deixamos de constatar. Lamento
por aquelas crianças que não têm os melhores pais do mundo… Muitos de nós não
são muito diferentes daqueles animais que consideramos selvagens e bestialmente
irracionais. Podemos sempre afirmar que não amamos os nossos filhos com a
racionalidade, mas com o coração! Mas todos os animais têm coração… E o
instinto? Quando a nossa cria está em perigo não estamos despertos para ir em
seu socorro. O que é isso senão instinto? Talvez o amor que o nosso coração
produz seja de uma substância distinta!...
Digo que não devia ser permitido
os pais irem trabalhar neste dia que o calendário os consagra, assim como,
satisfazendo os tão na moda requisitos da igualdade, as mães também não
trabalhariam no primeiro domingo de Maio. O governo, em sua defesa, virá responder
que todos os dias são dias para ser o meu pai do mundo e a melhor mãe do mundo,
e eu perco de imediato a razão.… Então que o calendário não tenha pressa de
avançar porque a minha menina será sempre pequenina. Nunca a deixarei
envelhecer! Como eu nunca envelheci para os meus pais…
Daqui a pouco vou telefonar ao
meu pai, como faço diariamente. Ele vai dizer-me que está tudo bem. Mesmo que
não estivesse iria afirmar-me que está! Os pais não gostam de preocupar os
filhos. O meu pai, à sua maneira, é o melhor pai do mundo, e eu, naturalmente,
sigo-lhe em linha de sucessão. Os nãos com que o meu pai me reprovava - que insiste em continuar em me a oferecer,
mesmo que eu não os peça e descure - se eu não os compreendia na altura, hoje
já os consenti quase todos, e os restantes ainda terei tempo para os aceitar.
Foram os seus nãos que me ajudaram a ser o homem que hoje sou, com as minhas
virtudes e os meus defeitos. E acho, modéstia aparte, que ele fez um bom
trabalho…. Confesso que me custa muito dizer um não à minha filha quando ela
vai contra o que eu acredito. Mas sei
que os nãos que hoje lhe dou a vão ajudar a conquistar os sins do futuro. E
como ela gosta de testar a minha resistência! Ela vê em mim um desafio, e eu
como jogador que sou, aceito o estímulo. Claro que na maior parte das vezes
saio a perder. Mas as suas vitórias nunca são as minhas derrotas. Normalmente
chegamos a um consenso, em que ela não termina o jantar e estamos os dois
ensofados a ver a Ladybug. E bons filhos ensinam-nos a sermos bons pais.
Vejo o meu pai a envelhecer
fisicamente e depois olho para a minha filha, cada vez mais parecida comigo –
que a minha mulher me perdoe! - e sinto
que no meio dos dois surjo eu, que nunca deixei de ser criança para o primeiro
e não posso ficar velho para a segunda. O melhor pai é aquele que é sempre um
irmão mais velho para o filho. E, para além das turras que os irmãos
saudavelmente têm, sempre olharei para a minha irmã mais nova como aquela que
eu tenho de proteger e a quem tenho de transmitir o conhecimento do mundo em
mudança. Sem nunca me esquecer que temos de levar a vida a brincar, senão é a
vida que brinca connosco. Mas confesso que não me sinto muito confortável a
brincar com bonecas. Quem assiste às nossas brincadeiras surpreender-nos-á a
tentarmo-nos convencer mutuamente de qual é a melhor brincadeira, o melhor
jogo, os melhores desenhos animados... Mas isso faz parte do relacionamento
entre as crianças. A mim ainda falta toda uma vida para deixar de ser criança,
assim como a minha filha tem toda a vida pela frente para se tornar adulta.
Que a minha filha nunca perca o
orgulho do pai que tento ser. Assim como terei orgulho da filha que um dia será
mulher, possivelmente mãe, mas que nunca deixará de ser a minha bebé. Lara,
perdoa-me por hoje não ires adormecer ao meu colo, mas o pai promete que daqui
a dez, vinte anos ainda terás o seu colo para adormecer… E o pai também não
deixará de adormecer contigo, exausto de um dia intenso de felicidade. Então a
mãe, também responsável por sermos o melhor pai e a melhor filha do mundo, vai
encaminhar-nos para a cama…
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