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CONTA-POUPANÇA



Desde que, por decreto governamental,
O jantar foi extinto na grande cidade
Que o povo conseguiu poupar milhares de refeições.

Esta noite a lotação continua esgotada.
Sento-me em posição de quem quer ser saciado:
O estômago sente-se confortável na primeira fila.

As algibeiras vazias reprimem as mãos túrgidas,
De repente sinto uma irreprimível necessidade de bater palmas:
Ao espectáculo da vida que principia dentro de momentos.
O preço do bilhete daria para comprar uma carcaça com manteiga,
Mas quando mais se espicaça o papo[AMF1]  mais se dilata a fome.
Hoje trouxe toda a minha família de esqueletos.
Desconfiavam que andava a comer às escondidas,
Mas a minha barriga devo-a ao princípio da incerteza
De que da última vez que me sentei à minha mesa o jantar foi servido.
Deixo-me extasiar pelas cortinas escarlates que se abrem sem pudor
Expondo corpos vorazes incapazes de saborearem as suas presas.
Apresentam-se um por um: todos são predadores.
Pedem voluntários ao palco num exercício eutanásico:
Levanta-se um homem a tremer de frio
Que já não consegue respeitar os abalos do corpo
Que com a subida colossal do dízimo
Fez das suas roupas a corda para a sua mulher se enforcar.
A polícia aprendeu a arma do suicídio e o homem permaneceu nu.
Sobe também uma mulher enfeitiçada,
Que grita que no se ventre cresce uma nova esperança.
O terceiro voluntário é um palhaço demasiado triste
Que viu cancelado o seu subsídio de desemprego,
Por já não conseguir fazer rir não encontra ocupação.
Vem um pianista cansado de marchas fúnebres,
Um padre acusado de negligenciar novenas,
Que excomungado ainda não se revela crente,
Os últimos voluntários, mais relutantes, são:
Um meteorologista que não consegue fazer chover,
Um médico estéril imune às pestes,
E uma prostituta apaixonada pelo seu último cliente,
Quem lhe comeu a carne não lhe quis roer os ossos.

Estou quase tentado em subir ao palco,
Mas amanhã o meu lugar na primeira fila estaria ocupado…


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